Nascimento de Mário de Andrade

Pioneiro do movimento modernista, Mário de Andrade é autor de obras como "Macunaíma" e "Amar, verbo intransitivo"

Por
Alice Elias
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Nascimento de Mário de Andrade
Segundo Aline Novais de Almeida, "o modernista teve coragem de desenvolver em sua própria obra esse processo de experimentação linguística". (Arte: Alice Elias)

Em 9 de outubro de 1893, nasceu o escritor Mário de Andrade. Autor de obras como Macunaíma, Amar, verbo intransitivo e Pauliceia desvairada, livro marco do modernismo brasileiro, sua participação ativa na Semana de Arte Moderna o consolidou como um dos maiores nomes do movimento modernista. Escreveu poesias, prosas de ficção, ensaios, crônicas, diários de viagem e cartas, além de se dedicar a diversas áreas do conhecimento.

Dentre suas principais contribuições, destacam-se dois aspectos centrais na escrita de Mário de Andrade: a pesquisa em sua biblioteca e a estilização da fala brasileira. A pesquisa em sua biblioteca revelou anotações nas margens dos livros e periódicos do autor, que trazem a compreensão de que as obras de Mário de Andrade estão baseadas no movimento de ler-escrever, esclarece Aline Novais de Almeida, doutora em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Quanto à estilização da fala brasileira, Aline Almeida explica que Mário de Andrade começa a “abrasileirar” sua produção a partir de 1922, incorporando constâncias do português brasileiro. O autor reuniu formais lexicais, verbais e semânticas que representavam a realidade vocal brasileira, visando um distanciamento e desapego das normatizações da língua lusitana nos registros escritos. Confira abaixo a entrevista com Aline Novais de Almeida, sobre o legado do escritor:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Mário de Andrade?

Aline Novais de Almeida: Mário de Andrade nasceu em São Paulo em 9 de outubro de 1893. De família tradicional católica, desde cedo teve acesso a livros e a uma boa educação. Formou-se com os “mestres do passado”, como Francisca Júlia e Vicente Carvalho. Estreou na poesia em 1917, sob o pseudônimo de Mário Sobral, com Há uma gota de sangue em cada poema, coletânea com tendências parnasianas e simbolistas. Em 1922, fez sua segunda estreia poética, ao lançar Pauliceia desvairada, livro marco do modernismo brasileiro. Neste ano, consolidou-se como proa do movimento modernista ao participar ativamente da Semana de Arte Moderna. Mário era um polígrafo inveterado, aventurou-se em diversas áreas do saber: música, crítica de arte, antropologia, filosofia e linguagem.

Além de se dedicar a diversas áreas do conhecimento, sua prolífica produção encontra lugar nas mais variadas práticas de escrita, como: poesia, prosa de ficção, ensaio, crônica, diário de viagem e carta – esta última monumental, somando muitos volumes já publicados. Constituiu, ao longo da vida, um riquíssimo acervo que se encontra, desde 1968, salvaguardado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Mário era arquivista de si, bibliófilo, colecionador de arte erudita e popular, também reunia manuscritos de outros escritores. Atuou como diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo (1935-1938), entre seus feitos estão a criação dos parques infantis e das bibliotecas circulantes, bem como a idealização e a organização da Missão de Pesquisas Folclóricas. Faleceu precocemente de infarto em sua casa – na rua Lopes Chaves, Barra Funda, em São Paulo – em 25 de fevereiro de 1945, deixando uma série de projetos inacabados, os quais foram retomados por Oneyda Alvarenga, Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido e ainda hoje continuam sendo objeto de dissertações e teses.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Mário de Andrade?

Aline Novais de Almeida: É possível destacar dois aspectos centrais na escrita de Mário: a pesquisa em sua biblioteca e a estilização da fala brasileira. Sobre o primeiro, observa-se que a biblioteca do escritor desempenha papel fundamental em seus projetos escriturais. Isso porque nos seus livros e periódicos geralmente encontram-se anotações marginais, isto é, marcas verbais e não verbais do lápis nas páginas que revelam a presença de cruzetas, traços e comentários do escritor-pesquisador. Assim, ter acesso à marginália traz a compreensão de que suas obras estão baseadas no movimento de ler-escrever. Mário se documenta para escrever, ele dá materialidade a essas leituras ao registrá-las com vigor pachorrento e de maneira sistemática nos fichamentos, nas fichas, nas notas de pesquisa e na marginália. Por isso, a biblioteca para Mário configura-se como espaço por excelência da sua criação escritural. Já o segundo aspecto, relacionado de certo modo ao primeiro, refere-se ao processo de estilização da fala brasileira que o escritor adota em seus textos ficcionais e não ficcionais.

A partir de 1922, Mário começa a “abrasileirar” sua produção, graças à contínua coleta documental – com base nas leituras e oitivas –, que realiza para reunir formas lexicais, verbais e semânticas que deflagrem a realidade vocal brasileira. Em posse dessas estruturas linguísticas, o modernista estiliza a sua linguagem, incorporando “constâncias” do português brasileiro em seus escritos. Esse inventário de tendências que se contempla na obra de Mário está inteiramente ligado ao seu manuscrito intitulado A gramatiquinha da fala brasileira –, que recebeu uma nova edição por mim organizada (Brasília: FUNAG, 2022) e está disponibilizada gratuitamente no site da editora. A gramatiquinha é um estudo inacabado que visa compreender aspectos linguísticos, psicológicos e poéticos da língua portuguesa falada no Brasil. Nesse projeto que rondou as preocupações do escritor até o final de sua vida, verifica-se a busca de uma universalidade brasileira libertadora que favoreça o desenvolvimento de uma verdadeira língua literária no país. De acordo com Mário, os escritores brasileiros ainda estavam cativos das gramáticas portuguesas, somado ao grande fosso existente entre a fala e a escrita, principalmente pelo apego às normatizações da língua lusitana no registro escrito. Desejoso em abrandar essa diferenciação, Mário opera uma estilização em sua própria obra, sonhando com o dia em que todos os escritores brasileiros alcançassem a língua nacional em suas literaturas, nas suas palavras: “Cada um que dê a sua estilização, a sua solução e se chegará um dia a essa normalização geral tirada do pouco que acertaram e do muito que erraram. Vale mais errar porém fazer do que não errar e não fazer”.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Aline Novais de Almeida: Há uma série de contribuições de Mário de Andrade que repercutem atualmente na literatura brasileira. Destaca-se a conquista de uma nova linguagem literária, repleta de idiossincrasias, na qual os autores contemporâneos manejam com total liberdade o português brasileiro. Afinal, não há mais o severo crivo das gramáticas prescritivas nem da academia submetendo a criação literária. O modernista teve coragem de desenvolver em sua própria obra esse processo de experimentação linguística. Outra colaboração diz respeito à naturalidade empregada na abordagem de assuntos conservadores e tabus da sociedade. A sua produção literária e ensaística revela um autor cujo interesse pelo erotismo é vivo e eloquente. Na sua lavra, mobilizam-se temas como o da prostituição, da homossexualidade, da imoralidade e da escatologia, seja de maneira mais insinuante ou enfática. A recente publicação Seleta erótica de Mário de Andrade (São Paulo: Ubu, 2022), da qual colaboro com a pesquisa e assino o posfácio, foi organizada por Eliane Robert Moraes, professora de Literatura Brasileira da FFLCH, e salienta exatamente tal aspecto da obra andradiana. Nessa direção, é importante ressaltar que Mário e a geração modernista abriram caminho para que os escritores nacionais focalizassem, sem constrangimento algum, o sexo e seu imaginário. Por fim, convém acrescentar que a obra do escritor dá protagonismo às manifestações da cultura popular. Seu pioneirismo nessa área é patente tanto como pesquisador que coleta documentos e artefatos populares – por meio da leitura e/ou do trabalho em campo – quanto pelo uso que faz desses elementos populares ao incorporá-los em seus estudos e na sua literatura. Hoje em dia, essas manifestações imateriais são identificadas, reconhecidas, salvaguardadas e promovidas através de programas governamentais, como o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). No sentido da defesa e da proteção do patrimônio artístico, vale lembrar que Mário elaborou nos anos 1930 o revolucionário anteprojeto de criação do SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o qual se tornou mais tarde o IPHAN.

Aline Novais de Almeida é mestre e doutora em Letras pela FFLCH, e especialista em Tecnologias, Comunicação e Técnicas de Ensino pela UTFPR. Membro do Conselho Científico e da equipe editorial da “Manuscrítica: Revista de Crítica Genética”. Integra a Diretoria da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética (APCG) como Secretária de Divulgação. Para quem se interessar sobre o tema, sua dissertação de mestrado está disponível em Edição genética d’A gramatiquinha da fala brasileira de Mário de Andrade.