Golpe liderado por militares sob o comando de Deodoro da Fonseca pôs fim a monarquia no Brasil
Em 15 de novembro de 1889, há 133 anos, o Brasil abandonava a Monarquia para se tornar uma República. Resultado de uma crise política e social que marcou o país na década de 1880, o golpe de Estado que derrubou o regime imperial foi comandado por militares sob a liderança do Marechal Deodoro da Fonseca. As Forças Armadas eram instituições politicamente fortes desde a Guerra do Paraguai e passavam por uma modernização desde meados do século 19, seguindo os moldes europeus. Isso contrastava com uma ordem social e econômica atrasada, apoiada na escravidão e na exportação de produtos primários. Somado a isso, ganhava espaço a causa abolicionista, bem como a defesa de um projeto de industrialização do Brasil que substituísse o modelo agrário-exportador.
Guillaume de Saes, doutor em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, destaca que o colapso do sistema escravista enfraqueceu ainda mais a Monarquia, que perdia uma importante base de sustentação. “Ao abolir a escravidão a contragosto em maio de 1888, o Império selava a sua sorte, perdendo o apoio de elites regionais pouco integradas entre elas e pouco interessadas na manutenção do centralismo político e administrativo”.
Outras forças interessadas na derrubada da Monarquia, segundo o pesquisador, eram os movimentos republicanos espalhados pelo país, como o Partido Republicano Paulista (PRP), que representava os interesses dos cafeicultores de São Paulo, um setor econômico em ascensão e que se sentia prejudicado pelo centralismo imperial. “O PRP (ou pelo menos a maioria dos integrantes deste partido) militava pela implantação do sistema republicano federativo sem abraçar a causa abolicionista e sem apoiar a mudança de regime pela via revolucionária”. Entretanto, logo que se estabeleceu o novo regime, os republicanos paulistas buscaram conquistar sua hegemonia, o que se efetivaria na segunda metade da década de 1890. É no governo de Campos Sales (1898-1902) que se consolida a política dos governadores, aliança entre o poder federal controlado pelos paulistas e os governantes estaduais.
Instabilidade
A mudança de regime não significou um apaziguamento das crises, que seguiram por todo o primeiro governo republicano, o de Deodoro da Fonseca. Durante a primeira década da República, Saes enumera diversas crises e revoltas que geraram confusão política. Alguns exemplos são a Revolução Federalista nos Estados do Sul do Brasil (1893-1895), a Revolta da Armada no Rio de Janeiro (1893-1894), as crises políticas enfrentadas no mandato presidencial de Prudente de Moraes (1894-1898), a Guerra de Canudos na Bahia (1896-1897), dentre outros conflitos armados ocorridos em diferentes estados.
Não houve, entretanto, tentativas concretas de restabelecer o regime monárquico, de acordo com Saes, já que o movimento monarquista no Brasil estava enfraquecido e já não encontrava apoio na elite brasileira, que via o advento da República como historicamente inevitável. “As lutas políticas da década de 1890 consistiram na verdade em conflitos entre diferentes grupos que buscavam assumir o controle do novo regime, tanto a nível nacional como a nível regional”.
Confira na íntegra a entrevista com o pesquisador, que é também autor do livro Militarismo e política na primeira década republicana brasileira (1889-1897).
Serviço de Comunicação Social: Qual era o contexto político e os interesses que levaram à Proclamação da República?
Guillaume de Saes: A derrubada do regime imperial no Brasil foi o resultado de uma grande crise política e social que marcou a vida do país na década de 1880. Temos, primeiramente, o colapso do sistema escravista, com a ascensão do movimento abolicionista de classe média e a intensificação da revolta escrava; esta última se manifestou por meio de fugas em massa de escravos das fazendas, com o apoio dos militantes abolicionistas mais ativos (os chamados caifazes). O fim da escravidão tirou da Monarquia a sua base social de apoio: o centralismo imperial era apoiado pelas elites agromercantis brasileiras apenas por ele ser uma garantia para a preservação e o funcionamento do mercado nacional de escravos, numa época em que o fornecimento externo de mão-de-obra escrava já havia sido interrompido por pressão inglesa. Ao abolir a escravidão a contragosto em maio de 1888, o Império selava a sua sorte, perdendo o apoio de elites regionais pouco integradas entre elas e pouco interessadas na manutenção do centralismo político e administrativo.
Outro fator decisivo para a queda do regime foi a revolta militar, que já se manifestara nos primeiros anos da década e que não pararia de crescer até o golpe de Estado de 15 de novembro de 1889. A revolta militar, muito mais forte no Exército do que na Marinha, consistira numa incompatibilidade entre uma instituição relativamente moderna – desde meados do século XIX, o regime imperial promoveu reformas no sentido de modernizar as forças militares brasileiras com base nos moldes europeus – e uma ordem social e econômica atrasada, apoiada na escravidão e na exportação de produtos primários. O apoio à causa abolicionista e a defesa de projetos de industrialização do Brasil – em substituição ao modelo agrário-exportador vigente – foram progressivamente ganhando força nos meios militares, levando-se em conta que as Forças Armadas já eram instituições politicamente fortes desde a vitória sobre Solano López na Guerra do Paraguai. A força do sentimento antimonárquico nos meios militares era forte a ponto de um general monarquista, como Deodoro da Fonseca, aceitar comandar a ação político-militar que derrubou o trono. Outras forças que defendiam a derrubada da Monarquia eram os diferentes movimentos republicanos espalhados pelo Brasil, com destaque para os movimentos republicanos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que atuavam estreitamente com os militares rebelados.
Um caso peculiar era o do Partido Republicano Paulista (PRP), partido forte, organizado e estruturado, que representava os poderosos interesses da cafeicultura do chamado “Oeste paulista”, mas que, em função de sua índole mais conservadora, esteve ausente das lutas políticas que levaram à queda do regime imperial. Representando um setor econômico em ascensão que se sentia desprestigiado e prejudicado pelo centralismo imperial, o PRP (ou pelo menos a maioria dos integrantes deste partido) militava pela implantação do sistema republicano federativo sem abraçar a causa abolicionista e sem apoiar a mudança de regime pela via revolucionária. Surpreendidos pelos acontecimentos, os republicanos paulistas logo se organizaram para conquistar a hegemonia dentro da nova ordem republicana, o que conseguiram fazer na segunda metade da década de 1890; a partir daí, controlaram o aparelho de Estado brasileiro, seja diretamente, seja por meio de aliados, mantendo este domínio até 1930. O fato de representarem o setor agrário-exportador mais forte e mais próspero do país possibilitou aos republicanos paulistas dominarem o regime republicano, mesmo não tendo eles participado da ação revolucionária que depôs o Imperador.
Serviço de Comunicação Social: Após a proclamação, como foi o processo de estabelecimento da República no Brasil?
Guillaume de Saes: A chamada primeira década republicana, que teve início em 15 de novembro de 1889 com o golpe militar que derrubou o Império, e terminou em 1897-1898 com a consolidação da República Civil no período final do governo de Prudente de Moraes, se destacou por uma grande confusão política e por uma grande violência. Temos, por exemplo, a crise política permanente que marcou o governo de Deodoro da Fonseca (1889-1891), a gravíssima crise econômica do Encilhamento, os debates em torno da elaboração constitucional (1890-1891), a ditadura de vinte dias instaurada por Deodoro em novembro de 1891, a ascensão de Floriano Peixoto após a queda de Deodoro, a série de deposições estaduais patrocinadas pelo governo Floriano em 1891-1892, a Revolução Federalista nos Estados do Sul do Brasil (1893-1895), a Revolta da Armada no Rio de Janeiro (1893-1894), as crises políticas que marcaram praticamente todo o governo de Prudente de Moraes (1894-1898), a Guerra de Canudos na Bahia (1896-1897), além dos diferentes conflitos armados ocorridos nos diferentes Estados da Federação brasileira. As milhares de mortes provocadas pelas lutas do período traduzem bem a dificuldade de consolidação da nova ordem política, tanto a nível nacional como a nível regional. A situação política do país só se acalmaria a partir da elaboração da famosa política dos governadores durante o governo de Campos Sales (1898-1902), quando se consolidou uma aliança entre de um lado o poder federal controlado pelos republicanos paulistas e seus aliados e do outro as situações estaduais. Após uma década de conflitos surgia a chamada República Oligárquica, isto é, um regime republicano formalmente representativo, mas de fato controlado por um pequeno grupo que permaneceria no poder durante três décadas fazendo para isso uso de acordos de todo tipo, assim como da fraude eleitoral, da violência coronelística etc.
Serviço de Comunicação Social: Houve resistências ao novo regime?
Guillaume de Saes: Não houve resistência no sentido de uma tentativa concreta de restauração monárquica. O movimento monarquista no Brasil da década de 1890 era fraco e não se apoiava em setores de peso da elite brasileira. Esta última havia aceitado, em seu conjunto, o advento da República como historicamente inevitável e, a partir de 1889, já procurava se adaptar à nova ordem. Como dissemos acima, a abolição da escravidão havia tirado qualquer base concreta de apoio para a Monarquia dentro das classes dominantes brasileiras. O movimento monarquista brasileiro da década de 1890 se apoiou sobretudo na militância individual de algumas figuras de relevo intelectual (por exemplo, Eduardo Prado, Afonso Celso), mas não possuía base de apoio sólida. Podemos dizer o mesmo de Saldanha da Gama, cujo manifesto de teor monarquista, publicado quando de sua adesão à Revolta da Armada em dezembro de 1893, deturpou o próprio sentido do movimento revoltoso, que apesar de conservador não tinha objetivos restauradores. Já no que diz respeito à comunidade de Canudos, que como sabemos se apoiava em ideais católicos e monarquistas, ela consistiu principalmente numa revolta popular contra os impostos da República e não possuía vínculo algum com as antigas elites monárquicas depostas em 1889.
As lutas políticas da década de 1890 consistiram, na verdade, em conflitos entre diferentes grupos que buscavam assumir o controle do novo regime, tanto a nível nacional como a nível regional. Encontramos lutas, muitas delas sangrentas, pelo poder nos diferentes Estados da Federação brasileira, com destaque para os violentíssimos conflitos no Rio Grande do Sul (que acabaram se expandindo para os Estados de Santa Catarina e Paraná) e em Mato Grosso. A nível federal, as lutas políticas consistiram essencialmente na disputa da hegemonia entre três grupos: a oficialidade militar republicana, que organizara a conspiração militar contra o regime imperial no final da década de 1880 e procurava moldar o novo regime com base em seu projeto político e em sua visão de mundo; as antigas elites financeiras do Império, que consistiam num poderoso setor bancário situado no Rio de Janeiro e que procuravam continuar comandando a política financeira do país no novo regime (este setor foi o grande aliado do governo de Deodoro da Fonseca e posteriormente estaria entre os financiadores da Revolta da Armada contra Floriano Peixoto); a poderosa cafeicultura paulista, que era a base de apoio do PRP e que por sua força econômica seria a grande vencedora das lutas políticas da primeira década republicana. Trata-se de um confronto entre diferentes projetos de República, uns mais progressistas, outros mais conservadores, uns mais radicais, outros mais moderados. O projeto vencedor foi o projeto liberal-federalista ligado aos interesses agrário-exportadores mais poderosos do país.
Serviço de Comunicação Social: Sua dissertação de mestrado aborda a primeira década republicana, focando no fenômeno político do florianismo. Você pode nos contar melhor sobre essa pesquisa?
Guillaume de Saes: Eu fiz a pesquisa no período 2002-2005, e defendi a dissertação em março de 2006, no Departamento de História da FFLCH. Foi um bom exercício de análise histórica, embora eu considere alguns aspectos do trabalho datados e, em alguns casos, mesmo incorretos. Por esta razão, em 2019 eu reescrevi o trabalho e publiquei em versão livro com o título Militarismo e política na primeira década republicana brasileira (1889-1897): trata-se de uma versão alternativa do texto do mestrado, sem o objetivo de substituir o texto original, e sim de apresentar uma visão um pouco mais madura e, penso eu, mais correta do mesmo tema. Posteriormente ao mestrado, eu fiz um doutorado, também na FFLCH, sobre os projetos de desenvolvimento e industrialização dos militares brasileiros no período 1880-1945 e, mais recentemente, eu fiz um pós-doutorado sobre a planificação econômica na França do pós-Segunda Guerra Mundial. Eu também publiquei estas duas pesquisas em livro. Neste momento, eu estou concluindo a publicação de um livro sobre as lutas políticas em São Paulo nos primórdios da República, retomando desta forma o universo temático da época do mestrado, mas dando agora um enfoque regional; o livro deve sair até o final deste ano. O meu objetivo, ao abordar o tema do florianismo, era entender e explicar o personagem histórico (no caso o Marechal Floriano Peixoto), inserindo-o no contexto de sua época. Em alguns aspectos creio que fui bem sucedido, em outros nem tanto. Talvez o mérito do meu trabalho tenha sido o de apresentar, com alguma precisão, o cenário político da época, as forças em jogo. Já quanto à análise do florianismo propriamente dito, creio que ela está longe do satisfatório, e neste aspecto eu sempre recomendo, para aqueles que querem conhecer melhor o tema, os trabalhos de autores como Suely Robles Reis de Queiroz e Lincoln de Abreu Penna, que estudaram mais a fundo o tema. A minha pesquisa de mestrado foi útil como preparação, como etapa necessária para as minhas pesquisas seguintes, que considero mais bem sucedidas.
O florianismo foi um movimento nacionalista dos primórdios da República brasileira que girou em torno da figura do Marechal Floriano Peixoto, Presidente do país entre 1891 e 1894 e representante da oficialidade republicana do Exército. Este movimento, logicamente, tinha forte base de apoio militar, mas também tinha adeptos nos meios civis, por exemplo, em alguns setores das oligarquias regionais e nas baixas camadas médias cariocas; é neste último segmento social que se desenvolveu o jacobinismo, tendência nacionalista e republicana radical que representou a ala mais atuante do movimento. O florianismo está associado a um projeto republicano militarizado e voltado para uma política de industrialização e modernização acelerada do Brasil. Este projeto seria derrotado, em função do próprio nível de desenvolvimento do país na época, isto é, um país agrário, recém-saído do escravismo e que não possuía uma burguesia industrial no sentido moderno do termo. A vitória dos representantes da cafeicultura paulista, com a eleição de Prudente de Moraes em 1894, era uma consequência lógica da evolução dos acontecimentos, e aconteceu muito em função do contexto social e econômico do Brasil, que naquele momento abria espaço apenas a setores mais modernos e dinâmicos das elites agrário-exportadoras. É somente com a Revolução de 1930, quando o Brasil já atingira novas etapas de seu desenvolvimento, que o projeto nacional-desenvolvimentista e industrializador teve as condições de ser implementado.
Como eu tentei mostrar no meu mestrado, o verdadeiro papel histórico do florianismo foi o de (inconscientemente) preparar o terreno para a ascensão política do PRP, ao derrotar facções militares rivais que estavam a serviço de setores das antigas elites dirigentes do Império que agora procuravam controlar o recém-criado aparelho de Estado republicano. O PRP possuía o poder econômico, mas não possuía ainda, naquela primeira metade da década de 1890, os meios políticos e militares para garantir a sua ascensão a nível federal: por esta razão, ele precisou se apoiar em setores militares mais progressistas (isto é, mais comprometidos com um projeto de transformação do Brasil) e que estavam dispostos a enfrentar forças conservadoras que representavam um grande obstáculo para os objetivos paulistas. Não por acaso, Floriano Peixoto e o PRP foram aliados entre 1891 e 1894, antes dos florianistas passarem para a oposição a partir da posse de Prudente de Moraes. Neste sentido, acreditamos que a fama de Floriano Peixoto de consolidador da República se deve mais a este papel histórico involuntário do que a uma vitória contra forças monarquistas que conspiravam pela restauração do trono.
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Guillaume Azevedo Marques de Saes possui graduação em História, mestrado em História Social, doutorado em História Econômica e pós-doutorado em História, todos pela FFLCH, atuando principalmente nas seguintes áreas: História do Brasil Independente, História Econômica do Brasil e História Contemporânea. Suas pesquisas estão disponíveis na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.