Nascimento de Charles Baudelaire

Autor de obras como "As flores do mal" e "pequenos poemas em prosa", baudelaire foi poeta, tradutor e crítico de arte

Por
Alice Elias
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Nascimento de Charles Baudelaire
"Poeta bifronte, múltiplo, Baudelaire manifestou poeticamente muitas das tensões presentes tanto na história da poesia francesa quanto na própria sociedade do século 19", afirma Thiago Mattos. (Arte: Alice Elias)

 

Em 9 de abril de 1821, nasceu Charles Baudelaire, poeta, tradutor e crítico de arte do século 19. Autor de As Flores do Mal, obra central da poesia ocidental, e Pequenos Poemas em Prosa, o poeta retratou questões referentes à história da poesia francesa, bem como referentes à sociedade do século 19.

Baudelaire foi um escritor múltiplo, que explorou o potencial das oposições: fez uso de tendências contrárias e escreveu sobre temas antagônicos. “Não espanta, portanto, que, a depender do recorte, Baudelaire possa ser considerado ou revolucionário ou reacionário, ou cristão ou satanista, ou autobiográfico ou fingidor”, afirma Thiago Mattos, mestre e doutor em Letras - Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Charles Baudelaire?

Thiago Mattos: Charles Baudelaire foi um poeta, tradutor e crítico de arte do século 19, nascido em 1821 e morto em 1867. Apesar de representar com perfeição a imagem do “poeta maldito” (expressão que se refere à relação tensa de certos poetas com a sociedade que o cerca, envolvendo, para além de questões literárias, questões comportamentais), Baudelaire tem uma origem burguesa. Seu pai, morto quando o poeta era ainda criança, deixa uma herança nada desprezível, que Baudelaire, assumindo uma vida de dândi, de esbórnia, consome rapidamente, até sofrer uma série de medidas judiciais por parte de sua mãe, Caroline Dufays. Sua mãe, aliás, é uma figura interessante na vida de Baudelaire, para quem, apesar da relação conflituosa, o poeta escreve algumas das suas cartas mais sentimentais. Ainda na infância de Baudelaire, Caroline Dufays casa-se com Jacques Aupick, coronel e futuro general, um dos grandes personagens da sociedade burguesa parisiense, figura com a qual Baudelaire terá uma relação no mínimo péssima. Conta-se, em tom talvez anedótico, que, numa noite da revolução de 1848, Baudelaire teria sido visto nas ruas de Paris, empunhando um fuzil, aos gritos de “Precisamos fuzilar o general Aupick!”. Endividado e com acesso limitado ao resto da herança, Baudelaire leva uma vida boêmia, habita uma infinidade de pequenos apartamentos, frequenta os meios literários parisienses, envolve-se com Jeanne Duval, atriz e dançarina haitiana que, como se pode imaginar, estava longe dos modelos femininos da sociedade burguesa, sofre um processo judicial por atentado à moral após a publicação da primeira edição das Flores do Mal (Fleurs du Mal) e, em 1857, é condenado, censurado, multado. Apenas em 1949, o Estado francês faria uma revisão do processo, anulando sua condenação. A partir dos anos 1860, sua saúde se deteriorou rapidamente. Devastado pela sífilis e por um estilo de vida pouco dado à moderação, morreu em agosto de 1867. É enterrado, ironicamente, na mesma sepultura do padrasto, o General Aupick.    

Do ponto de vista literário, Baudelaire é autor de As Flores do Mal, obra central da poesia ocidental, que contou com três edições durante a vida do autor (1855, 1857, 1861), além de uma quarta edição póstuma, em 1868. É autor também de uma obra póstuma que ficou conhecida como Pequenos Poemas em Prosa [Petits Poèmes en Prose], ou simplesmente Spleen de Paris, publicada pela primeira vez em 1869. Paralelamente à carreira literária, Baudelaire dedica-se também à crítica de arte. Seus textos sobre pintura são incontornáveis, e neles encontramos algumas noções – a ideia de modernidade, arte moderna etc. – fundamentais tanto para a literatura quanto para a arte dos séculos 19 e 20.   

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Baudelaire?

Thiago Mattos: É bastante difícil elencar os elementos que caracterizam a escrita de Baudelaire, já que ele muitas vezes encarna tendências e questões opostas, até contraditórias. Leyla Perrone-Moisés, professora da USP, escreveu no seu livro Altas Literaturas (2003): “Baudelaire é clássico ou moderno, romântico, parnasiano ou simbolista? Seus poemas permitem, topicamente, cada uma dessas leituras, e o conjunto invalida todas”.

Basta dizer, por exemplo, que, enquanto nas Flores do Mal a forma fixa e o rigor do verso ocupam um lugar central, nos Pequenos Poemas em Prosa, como o próprio nome indica, são questões formais espantosamente diferentes, até opostas, que tomam a atenção de Baudelaire.

Esse mesmo tipo de oposição encontramos no plano dos temas. Não espanta, portanto, que, a depender do recorte, Baudelaire possa ser considerado ou revolucionário ou reacionário, ou cristão ou satanista, ou autobiográfico ou fingidor. A tal ponto que, mais recentemente, Antoine Compagnon, importante crítico literário contemporâneo, resolveu resumir a questão baudelairiana numa ideia bastante prática: Baudelaire é irredutível a classificações estáveis, a sínteses totalizantes. É necessário, portanto, olhar mais de perto para suas duas principais obras, As Flores do Mal e Pequenos Poemas em Prosa.

As Flores do Mal apresentam uma arquitetura interna bastante rigorosa. Individualmente, a maioria dos poemas são escritos em verso alexandrino, o verso clássico francês, lustrado, limado, polido à exaustão por autores como Malherbe e Racine. Muitos são sonetos. Coletivamente, os poemas são organizados em seis partes: “Spleen e Ideal”, “Quadros Parisienses”, “O Vinho”, “Flores do Mal”, “Revolta”, “A Morte”. Essa organização desenha na obra um itinerário, uma narrativa, que se inicia com uma crise (o sujeito poético dividido pelo tédio e pela aspiração a um mundo ideal), passa pelas ambivalências do mundo moderno, pelos paraísos artificiais, pelos horrores da carne, pela revolta diante de uma situação existencial sufocante e insolúvel, e termina na última viagem possível, aquela que, desconhecida, traz uma esperança última: a morte.

Essa arquitetura formal tão rigorosa, tão calculada, dialogando com a tradição e com a elevação da poesia (alexandrino, soneto…), choca-se, no entanto, com os temas da obra. Erich Auerbach, um dos grandes críticos do século 20, mostra como na poesia de Baudelaire, no meio de um verso elevado, de tons sublimes, surge subitamente um termo inesperado, prosaico – por exemplo, a palavra “couvercle” [tampa], inadmissível no discurso poético até então. Além disso, enquanto o verso alexandrino era adotado na tradição francesa para cantar temas nobres e superiores, Baudelaire coloca-o a serviço da podridão, da prostituição, do satanismo, da feiura, do hediondo, da infestação, do desespero e da danação. Tal choque é uma das muitas formas de compreender o próprio título da obra, As Flores / do Mal.

Já nos Pequenos Poemas em Prosa, como o nome indica, temos pequenos textos sem versos, mas que são, ainda assim, poemas. Essa questão, com o perdão do trocadilho, está longe de ser prosaica, trivial, e infelizmente não tenho como aprofundá-la aqui. Basta saber que, se nas Flores do Mal temos uma construção formal tão minuciosa, seja na composição dos poemas, seja na composição do livro, agora estamos diante de textos de ordenação maleável, escritos numa prosa mais ou menos frouxa, capaz de se adaptar, nas palavras de Baudelaire, aos movimentos líricos da alma, aos sobressaltos da consciência, à dinâmica das cidades enormes. Muitos desses poemas em prosa aproximam-se do que chamaríamos, na nossa literatura brasileira, de pequenas crônicas, em que um sujeito tira da vida cotidiana, pequena e comezinha, uma fagulha poética.     

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Thiago Mattos: Poeta bifronte, múltiplo, Baudelaire manifestou poeticamente muitas das tensões presentes tanto na história da poesia francesa quanto na própria sociedade do século 19. O conflito entre uma ordem aristocrática e uma ordem burguesa; os choques da vida urbana moderna, acelerada, anônima; os limites das formas clássicas para dizer a experiência existencial do sujeito moderno; a utilidade, ou a inutilidade, da poesia num mundo estreitado pelas regras da mercadoria e do utilitarismo; a autoconsciência crítica do artista moderno; a poesia como lugar de certa expressão lírica, pessoal, individual, mas também como espaço de criação ficcional, de impostura, de fundação de um mito de si mesmo.

Paul Valéry, numa palestra proferida em 1924 e publicada mais tarde com o título “Situação de Baudelaire”, classificou Baudelaire como o pioneiro da modernidade. Rimbaud, Verlaine e Mallarmé (além do próprio Valéry, poderíamos acrescentar) formam uma linhagem caudalosa no interior da poesia europeia. No caso de Baudelaire, dado seu caráter contraditório, irredutível, sua influência se torna ainda mais capilarizada. Ouvimos ecos de Baudelaire em Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, Valéry e Yves Bonnefoy, mas também em Apollinaire, Cendrars, Breton, Césaire e Philippe Jaccottet. Patrick Chamoiseau, um dos escritores da créolité caribenha (heterogeneidade cultural e linguística), publicou em 2022 Baudelaire Jazz, fruto de uma homenagem ao poeta. A mesma diversidade aparece na crítica literária. Walter Benjamin, Auerbach, Sartre, Bourdieu, Giorgio Agamben (apenas para ficar nos nomes mais conhecidos) são autores que, inseridos nas mais diferentes tendências, debruçaram-se sobre Baudelaire.  
No Brasil, a presença de Baudelaire também é forte.

“Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire”, escreveu o compositor pernambucano Antônio Maria, e Carlos Drummond de Andrade, em “Poema da Necessidade” (Sentimento do Mundo), escreveu que “é preciso estar sempre bêbedo,/é preciso ler Baudelaire,/é preciso colher as flores/de que rezam velhos autores”. Estou me referindo a citações diretas ao nome de Baudelaire, mas a poética baudelairiana se faz ouvir, para ficar somente no caso de Drummond, tanto em Claro Enigma quanto em Contos de Aprendiz, obras tão díspares, tão opostas, aparentemente inconciliáveis.
Também notável é o quanto a obra de Baudelaire tem suscitado entre nós discussões e experiências tradutórias. Integralmente ou apenas em partes, pode-se dizer que o Brasil está entre os países que mais traduziram Baudelaire. Passando por Guilherme de Almeida, Ivan Junqueira, Mário Laranjeira, Júlio Castañon, entre tantos outros, As Flores do Mal fundaram no Brasil uma espécie de ateliê de experimentações de tradução poética. E instituíram, consequentemente, um espaço dos mais produtivos para a discussão e o pensamento sobre tradução de poesia.

Thiago Mattos é mestre e doutor em Letras (Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês) pela FFLCH. Em 2019, realizou pesquisa de pós-doutorado em Letras Estrangeiras e Tradução (LETRA) da FFLCH. Tem formação na área de Letras, com experiência em tradução literária, literaturas de língua francesa, ensino de francês, análise do discurso francesa, literatura brasileira e editoração.