A revolução marcou a queda do regime do Czar Nicolau II e a ascensão dos bolcheviques liderados por Lenin
A Revolução Russa foi um evento definidor do século 20, cujo impacto repercute até os dias atuais. Marcada por dois grandes atos – a revolução de fevereiro e a revolução de outubro, ambas no ano de 1917 – foi motivada por fatores como a primeira grande guerra, a economia, o descontentamento e a desorganização do aparato estatal russo.
Fruto de revoltas campesinas e greves industriais que ocorriam desde 1914, a revolução de fevereiro resultou na queda do regime autocrático do Czar Nicolau II, na formação de um governo provisório e no retorno dos sovietes para o cenário político russo. Já a revolução de outubro refletiu a incapacidade do governo provisório de atender às demandas populares – comida, terra, aumento de salários e fim da guerra – o que possibilitou a tomada de poder dos bolcheviques, liderados por Vladimir Lenin, em 25 de outubro de 1917.
“Os bolcheviques, por sua vez, eram conscientes de que a sobrevivência da revolução passava pela superação do estado de inação de um governo provisório que já se mostrava obsoleto perante as demandas impostas pelo momento histórico. Quando forças populares ligadas ao partido bolchevique tomaram de assalto pontos estratégicos da cidade de Petrogrado, não encontraram resistência substantiva. O Governo provisório caía sem oferecer qualquer resistência real. Com a ascensão de Lenin ao poder, instaurou-se o regime dos conselhos de operários, soldados e camponeses: a República Soviética de todas as Rússias, um Estado de orientação marxista”, afirma Pedro Ramos Toledo, mestre em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Para entender mais sobre as causas e repercussões da Revolução Russa, confira a entrevista completa:
Serviço de Comunicação Social: O que foi a Revolução Russa, e quais as principais causas que motivaram esse movimento?
Pedro Ramos Toledo: Acredito que podemos dizer, com alguma segurança, que a Revolução Russa foi o evento histórico definidor daquilo que Hobsbawm denominou como o “Breve Século XX”. Suas causas foram muitas e variadas no tempo. Lenin, líder e fundador do partido bolchevique, apontava como ato inaugural da Revolução Russa as reformas administrativas do Estado czarista e o fim da servidão em 1861. Por um lado, o fim da servidão possibilitou a progressiva proletarização do campesinato russo e semeou em seu interior grande descontentamento ao transferir para o campesinato os custos de reparação à nobreza pela perda de terras e mão de obra. Por outro lado, as Reformas administrativas, ao abrirem o aparelho burocrático para a pequena burguesia e intelectuais advindos das classes populares, possibilitaram o surgimento de novos grupos sociais que se tornariam, nas décadas seguintes, renhidos opositores da autocracia czarista: a intelligentsia. Outros fatores também se mostraram fundamentais: um acelerado processo de industrialização dependente de capitais externos que propiciou a formação de um proletariado industrial concentrado nas grandes cidades russas e que vivia em condições de trabalho absolutamente desumanas; um estado policialesco e autocrático que instigou por décadas um ódio profundo ao regime do Czar e que interditava quaisquer tentativas de reformas democráticas; a participação desastrada de um exército russo mal preparado e equipado na Primeira Guerra Mundial, que resultou em pesadas baixas e na desmoralização de suas forças armadas; seguidas ondas de fome por todo o país e desabastecimento nas grandes cidades, que elevava o preço do alimento e se devia, em parte pelo recrutamento forçado do campesinato para atuar no front de batalha, retirando do campo a mão-de-obra necessária para a produção de alimentos. Por fim, o partido bolchevique, um partido de orientação marxista, disciplinado e organizado sob o princípio do vanguardismo revolucionário e que soube, no momento certo, colher para si o poder de um Estado fragmentado por lutas intestinas.
Para definirmos o que foi tal revolução – sua periodicidade e desenvolvimento – é preciso pensá-la como um processo dividido em dois atos: as revoluções de fevereiro e outubro. Seu momento inaugural se fez na derrubada do regime autocrático do Czar Nicolau II a partir de grandes levantes populares que tomaram todo o país a partir de 23 de fevereiro de 1917 e a subsequente formação de um governo provisório de natureza liberal, cujo poder era sombreado pelo órgão representante dos interesses de operários, soldados e camponeses e que exercia grande influência sobre o processo político revolucionário: O Soviete de Petrogrado.
Seu segundo ato, a tomada de poder empreendida pelos bolcheviques liderados por Vladimir Lenin, em 25 de outubro de 1917, pode ser entendido como um desenvolvimento das contradições que instaram a revolução de fevereiro: O Governo provisório, incapaz de atender as demandas populares por pão, terra, aumento de salários e pelo fim da guerra e enfraquecido por seguidas crises de representação e tentativas de golpes, encontrava-se isolado, cabendo aos sovietes o poder de facto. Os bolcheviques, por sua vez, eram conscientes de que a sobrevivência da revolução passava pela superação do estado de inação de um governo provisório que já se mostrava obsoleto perante as demandas impostas pelo momento histórico. Quando forças populares ligadas ao partido bolchevique tomaram de assalto pontos estratégicos da cidade de Petrogrado, não encontraram resistência substantiva. O Governo provisório caía sem oferecer qualquer resistência real. Com a ascensão de Lenin ao poder, instaurava-se o regime dos conselhos de operários, soldados e camponeses: a República Soviética de todas as Rússias, um Estado de orientação marxista. Em 1923, após a vitória do Exército Vermelho em uma sangrenta Guerra Civil, a nascente república Soviética viria a se tornar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e marcaria indelevelmente a história global de todo o século 20.
Serviço de Comunicação Social: Qual era o contexto político na Rússia e no mundo quando a Revolução teve início?
Pedro Ramos Toledo: Existe um debate em aberto acerca da relação causal entre a Revolução Russa e a 1ª Guerra Mundial. Em outras palavras, foi a Revolução filha da Grande Guerra ou teria ela acontecido independentemente do conflito europeu? Sem nos atermos a esse debate historiográfico, a relação entre esses dois eventos tem elementos indiscutíveis. A declaração de guerra do império Austro-húngaro à Sérvia acabou por arremessar a Rússia, através da política de alianças estabelecida desde as últimas décadas do século 19, em uma guerra de escala e violência inauditas. Mal preparadas e equipadas, as tropas russas sofreram grandes reveses, o que levou o Czar Nicolau II a assumir o comando direto das tropas. Tal decisão, além de afastar o Czar de sua capital e centro de poder ao forçar seu deslocamento para cidade de Mogilev, Quartel General do Exército Russo, acabou por levar à sua responsabilização direta pelas seguidas derrotas e baixas militares.
No plano interno, a guerra acabou por acelerar o choque entre o Estado Autocrático e a sociedade russa. Sem acesso às modernas armas de guerra, o exército russo dependia, em suas estratégias, de vastos contingentes de infantaria. O alistamento forçado de grandes massas de camponeses acabou por reduzir a produção agrícola de cereais, gerando grandes ondas de fome e endividamento externo, principalmente de capitais franceses e ingleses. A conversão da indústria pesada para atender a máquina de guerra russa acabou por gerar o desabastecimento de víveres e ferramentas no campo e nas cidades, agravando ainda mais a situação de pauperização de largas parcelas da população. A guerra, o descontentamento e a desorganização do aparato estatal russo, bem como de sua economia, acabaram por lançar a sociedade russa em fervor revolucionário, expresso em grandes revoltas campesinas e greves industriais entre 1914 e 1917 e que trouxeram de volta para o cenário político russo os conselhos executivos das classes produtoras - os sovietes - cujo papel na organização dos grandes levantes populares se mostrou fundamental para a derrocada do Czar e de seu regime.
Serviço de Comunicação Social: Quais as maiores repercussões e consequências desse movimento?
Pedro Ramos Toledo: Devemos retomar aqui a ideia que apresentamos no começo desta entrevista. A Revolução Russa foi um evento definidor do século 20 e, porque não, do século em que vivemos. Em 1919, o Jornalista Inglês John Reed publicou a obra “Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo" na qual apresentou um testemunho ocular da tomada de poder bolchevique e do nascimento do Estado Soviético. Sua fundação lançou na arena da história aquilo que o filósofo Alain Badiou denominou “A Grande Hipótese”, isto é, traduziu em fato histórico a hipótese de emancipação da espécie humana desde a superação do modo de produção capitalista a partir da constituição de uma nova ordem.
A vitória da Revolução Russa e o surgimento do primeiro estado socialista do mundo, cujo território comprimia um sexto da superfície terrestre, produziram ondas de choque que reordenaram a geopolítica mundial. Nos anos seguintes à revolução, dezenas de partidos comunistas foram fundados em todos os continentes, adotando como modelo organizativo o Partido Leninista de Vanguarda. Sua vitória também serviu como estopim para diversos intentos revolucionários nos países capitalistas ocidentais. Alemanha, Hungria e Itália passaram por experiências revolucionárias que prenunciaram a possibilidade real de uma revolução proletária internacional.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a URSS foi fundamental para a derrota do nazi-fascismo. A “Guerra Patriótica”, responsável pela morte de mais de 23 milhões de russos, expandiu o bloco soviético ao incorporar diversas nações do Leste Europeu e reordenou a geopolítica mundial em uma forma bipolar em que se opunham o bloco de países capitalistas liderados pelo EUA e o bloco de países socialistas capitaneados pela URSS. O desenvolvimento de gigantescos arsenais atômicos pelas duas superpotências impedia quaisquer conflitos diretos, resultando no uso de estados “satélites” para fazer valer interesses estratégicos. Essa nova ordem geopolítica que emerge da Segunda Guerra foi denominada “Guerra Fria”.
A Revolução Russa foi ainda um modelo de aspiração e luta política especialmente frutífero nos países coloniais e semi-dependentes, localizados nas periferias da nova ordem mundial. O “assalto aos céus” russo e a difusão da obra marxiana que o mesmo ensejou serviram de modelo organizativo para importantes movimentos revolucionários, como as revoluções chinesa, angolana, vietnamita, moçambicana e cubana. Em meados de 1960, quase metade da população mundial vivia em um regime socialista. Foi a partir do auxílio de diversos desses estados revolucionários que se deu grande parte dos movimentos de descolonização africana a partir dos anos 60.
Com a dissolução da URSS, em novembro de 1991, chegava ao fim não somente a experiência soviética, como o “breve século 20”. No entanto, isso não significa dizer que suas consequências ficaram no passado. A República Popular da China caminha para se tornar a mais importante economia do século 21 e, ainda que tenha abraçado o mercado, segue escorando seu poder político no modelo de partido-estado, proposto pela primeira vez pelos revolucionários russos há mais de 100 anos. A grande hipótese continua em aberto.
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Pedro Ramos Toledo é mestre em História Econômica pela FFLCH e doutorando no Programa de Pós-Graduação em História Social na mesma instituição. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Revolução Russa.