Várias obras machadianas, como “Dom Casmurro”, fazem parte do imaginário do povo brasileiro
Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? É quase certo que mesmo aqueles que pouco se interessam por Literatura já ouviram esse debate ou até mesmo participaram dele. Essa é uma questão que perdura há mais de cem anos, assim como o legado de Machado de Assis, um dos autores brasileiros mais reconhecidos mundialmente, nascido em 21 de junho de 1839 no Rio de Janeiro. Suas contribuições para a Literatura são incontáveis e estão presentes até hoje no imaginário popular. Machado deixa para nós, leitores, suas inesquecíveis memórias póstumas.
Seu impacto não é à toa. Machado foi fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, além de ter escrito alguns dos maiores clássicos da literatura brasileira. E não se limitou aos romances: escreveu também poesia, contos, crônicas, peças de teatro, críticas literárias e ainda atuou como jornalista.
Em sua vida pessoal e em sua carreira, passou por um processo de ascensão social que é refletido em sua escrita. Enquanto algumas de suas obras retratam o ponto de vista de classes mais pobres, outras são narradas pela ótica das classes abastadas, sempre com toques perspicazes de ironia, que são um traço típico machadiano.
Embora frequentemente se afirme que Machado foi um autor realista, essa definição pode ser um tanto simplista para a complexidade de suas obras. O escritor desaprovava certas questões estéticas e morais do realismo em suas críticas literárias. Essa é, também, outra característica importante da escrita machadiana: a presença de críticas sociais, muitas vezes misturadas com humor e inseridas em temas universais.
“Machado não só é grandemente aclamado na crítica literária nacional, mas também é um dos principais expoentes da literatura brasileira ao redor do mundo, muito embora nossos autores infelizmente não tenham o reconhecimento merecido. Sua popularidade alcança não só críticos brasilianistas como John Gledson, Paul Dixon, Helen Caldwell e Susan Sontag, por exemplo, como também escritores como Paul Auster e Maya Angelou. Harold Bloom, célebre crítico literário estadunidense, chega a afirmar que Machado é o maior literato negro da história da literatura universal”, segundo Luiza Helena Damiani Aguilar, mestre em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Confira a entrevista completa:
Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Machado de Assis, para os leitores que ainda não o conhecem?
Luiza Helena Damiani Aguilar: Nascido em 1839, Machado de Assis viveu toda a sua juventude e boa parte de sua vida adulta durante o Segundo Reinado. Neto de escravos alforriados e filho de um pintor de paredes com uma imigrante açoriana, sua trajetória de uma infância pobre ao exercício de cargos de grande relevância no funcionalismo público permitiu que seu olhar transitasse por diferentes classes sociais, algo que foi problematizado em suas obras e contribuiu para que Machado alcançasse o posto de maior autor de sua época.
Embora Machado seja conhecido majoritariamente por seus romances - em especial, a tríade Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba -, sua produção literária é vasta e se estende pelos mais diversos gêneros: conto, poesia, teatro, crônica, crítica literária. Além disso, no início de sua jornada, Machado atuou como jornalista, contribuindo com periódicos como a Marmota Fluminense e o Diário do Rio de Janeiro, dentre outros. Anos mais tarde, sua atuação nas folhas do século XIX se transforma, e Machado passa a colaborar não só com a publicação de literatura nos folhetins, mas também como cronista.
Suas primeiras publicações como escritor acontecem ainda na adolescência, mesmo período em que passa a se envolver com intelectuais brasileiros e franceses que o recebem de braços abertos. A partir de então, Machado vai se enfronhando nos círculos letrados e fazendo amizade com figuras como José de Alencar, de quem “herda” o título de principal escritor brasileiro do século XIX após a morte do cearense em 1877.
Machado faleceu em 1908, aos 69 anos, depois de publicar nove romances, mais de duzentos contos, quatro coletâneas de poesia, mais de uma dezena de peças teatrais e inúmeras séries de crônicas, além de diversos textos de crítica teatral e literária. Seu legado para a literatura nacional conta também com a fundação da Academia Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro presidente.
Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita machadiana?
Luiza Helena Damiani Aguilar: A escrita machadiana é permeada por diferentes características que se interconectam e se desenvolvem de formas diversas ao longo de sua trajetória como escritor. Suas peças de teatro são de curta extensão e fazem parte de um gênero intitulado “provérbio dramático”, enquanto sua poesia tem traços que se assemelham ao parnasianismo. Suas crônicas são vistas como ponto de origem da crônica brasileira moderna, misturando literatura com um resumo dos assuntos da semana.
Em se tratando da sua prosa, vista por muitos como a principal seara de sua literatura, a obra de Machado é frequentemente dividida em duas fases, sendo a segunda classificada como “realista”. Tanto uma definição quanto outra necessitam ser nuançadas com o objetivo de evitar simplificações. A divisão em duas maneiras parece pressupor uma ruptura entre seus quatro primeiros romances, vistos como herdeiros da tradição do Romantismo, e sua obra após Memórias Póstumas de Brás Cubas. Críticos como Silviano Santiago e Hélio de Seixas Guimarães, por exemplo, argumentam que a prosa machadiana funcionaria como um sistema coeso, em que certos traços presentes de maneira tímida em suas primeiras produções se desenlaçam e se desenvolvem na sua obra mais madura. Já em se tratando da classificação de alguns de seus romances como “realistas”, a associação de suas últimas cinco obras com o Realismo ignora aspectos da escola literária que eram severamente criticados por Machado. Em mais de uma ocasião, o autor de Helena tece duros comentários não só sobre aspectos morais do Realismo, mas também aos seus preceitos estéticos, como no caso das duas resenhas ao romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, publicadas no jornal O Cruzeiro em 1878.
De modo geral, suas obras trazem consigo traços que aparecem em autores de diferentes momentos da literatura universal, desde a Antiguidade até a Inglaterra dos séculos XVII e XVIII. Com fortes tons de ironia, Machado mistura o cômico e o sério, entrelaçando críticas sociais sutis com paródias de gêneros consagrados na literatura mundial, por exemplo. Se as suas primeiras obras vêm acompanhadas de narradores que procuram orientar o leitor a partir da visão de indivíduos socialmente menos favorecidos, a partir de Brás Cubas o narrador assume uma postura mais agressiva em relação ao leitor e passa a abordar o mundo a partir da visão das classes sociais mais abastadas.
Machado também foi um grande contista, publicando mais de duzentos textos, embora muitos deles tenham sido veiculados apenas em jornais do século XIX. Suas coletâneas de contos alcançaram um grande prestígio entre o público oitocentista, e suas produções abrangem temas e composições diversas, contemplando desde uma paródia do Gênesis, como em Na Arca, até narrativas de cunho mais tradicional, como A Cartomante, por exemplo.
Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?
Luiza Helena Damiani Aguilar: O impacto de Machado de Assis na literatura brasileira tem ramificações que vão muito além de proporcionar interesse pela leitura. Machado, principalmente no início de sua trajetória literária, advogava pelo poder civilizatório do jornal e do teatro. Justamente por esse motivo, ele foi um grande incentivador da literatura nacional, escrevendo prefácios para novos poetas, avaliando obras para o Conservatório Dramático e publicando textos críticos sobre a situação da literatura nacional, como é o caso de Notícia da Atual Literatura Brasileira: Instinto de Nacionalidade, publicado no periódico O Novo Mundo em março de 1873. Já no século XIX, portanto, o grande escritor carioca promovia o desenvolvimento de nossa literatura, algo que perdurou para além de sua vida: não só a Academia Brasileira de Letras continua existindo até os dias de hoje, como diversos de nossos autores ao longo dos séculos seguintes admiravam e continuam admirando a obra machadiana.
Além disso, Machado não só é grandemente aclamado na crítica literária nacional, mas também é um dos principais expoentes da literatura brasileira ao redor do mundo, muito embora nossos autores infelizmente não tenham o reconhecimento merecido. Sua popularidade alcança não só críticos brasilianistas como John Gledson, Paul Dixon, Helen Caldwell e Susan Sontag, por exemplo, como também escritores como Paul Auster e Maya Angelou. Harold Bloom, célebre crítico literário estadunidense, chega a afirmar que Machado é o maior literato negro da história da literatura universal.
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Luiza Helena Damiani Aguilar é mestre em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa pela FFLCH da USP e doutoranda pelo mesmo programa. Possui experiência com temas relacionados a Machado de Assis; história da imprensa e do livro no Brasil; mediação editorial; os jornais oitocentistas O Cruzeiro, Jornal das Famílias e A Epocha; e a obra Papéis Avulsos. Atualmente, desenvolve pesquisa em torno dos textos Singular Ocorrência, Missa do Galo e Dom Casmurro, também de Machado de Assis, com o objetivo de analisar os papéis dos narradores masculinos na construção de personagens femininas enigmáticas. Ainda durante a graduação, desenvolveu, com bolsa da FAPESP, a pesquisa de Iniciação Científica "Machado de Assis em Jornal e em Livro: os Diferentes Suportes e os Diferentes Sentidos do conto Na Arca".