“Antes da ascensão de Hitler, recebi a visita de um tio que residia na Suíça. Lembro-me que, já nessa época, ele nos preveniu: ‘É um grande erro ficar na Alemanha’”, conta a pintora e zoóloga Mathilde Maier, em seu relato dado ao Núcleo de Estudos ArqShoah em 1989, sete anos antes de vir a falecer. Mathilde e seu marido, o advogado Max Maier, deixaram Frankfurt em 1938, no dia em que as sinagogas da cidade foram incendiadas. Chegaram ao Brasil no mesmo ano e se instalaram em Rolândia, Paraná. Assim como outras dezenas de famílias judias refugiadas na cidade, viveram como agricultores durante anos e demoraram para voltar a exercer suas profissões.
Parte das histórias e dos trabalhos de Mathilde, dos artistas plásticos Lise Forell e Walter Levy, do intelectual Stefan Zweig, entre outros refugiados, exilados e sobreviventes do Holocausto, serão reproduzidas na exposição Entre Mundos: O legado dos refugiados do nazifascismo em tempos de intolerância — Brasil, 1933-1945.
A mostra faz parte da 18ª edição da Maifest, tradicional festa alemã paulistana, e ficará exposta no Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), no Brooklin, nos dias 27 e 28 de maio. Após o evento, instituições e escolas interessadas poderão entrar em contato com os organizadores para expor o material também.
Entre Mundos é resultado do projeto Vozes do Holocausto, organizado pelo Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e apoiado pela Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp), a Confederação Israelita do Brasil (Conib) e a organização judaica B’Nai B’rith.
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Destruição e confinamento
Walter Levy, Destruição, litografia n.1/61. Álbum 35 litografias. São Paulo, 1942. Coleção Tucci/SP
Walter Lewy nasceu em Oldesloe (Alemanha) em 1905. Frequentou a Escola de Artes e Ofícios em Dortmund, filiando-se à corrente do Realismo Mágico. Sua primeira individual em Bad Lippspringe (1932) foi fechada pela Câmara de Arte Alemã, que proibiu a participação de judeus na vida artística. Por questões raciais emigrou para o Brasil em 1937, sendo que seus pais morreram em campos de extermínio na Alemanha. Suas obras estão ligadas à pintura surrealista e fantástica. A partir de 1951 participou de várias bienais internacionais de São Paulo. Medalha de Prata (1954), Ouro (1955) e premiado como Pintor do Ano pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (1954). Faleceu em São Paulo em 1956.
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Itália: espaços de exclusão
Ruth Tarasantchi, campo de concentração de Ferramonti (Itália), 1943, gravura em metal água forte e lavis, 40×53. São Paulo, 2001. Acervo da artista
Ruth Sprung Tarasantchi, pintora, gravadora e atual diretora do Museu Judaico de São Paulo. Nasceu em Sarajevo (Bósnia-Herzegovina) em 1933, filha do dr. Rudolf Sprung e de Paula Dohan. Em 1941, residiam em Bugojno quando, perseguidos, fugiram para Trieste e Castel Nuovo Don Bosco, onde ficaram confinados. Em 1943 foram transferidos para o campo de concentração de Ferramonti, sul da Itália, com outras 2.500 pessoas. Em 1945, libertados pelos ingleses, fugiram para Bari, Palermo e Roma. Em Florença conseguiram vistos para o Brasil e, em 1947, desembarcaram em Santos, radicando-se em São Paulo.
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De Berlim a Montevidéu
Von der alten Heimat zu der neuen Heimat (Da velha terra para a nova terra). Roteiro da viagem percorrida por Federico Freudenheim registrado a bordo do navio Jamaique, 1º/3 a 30/11/1938. Acervo I. Freudenheim/SP; Arqshoah-Leer-USP
Maus tratos e humilhações
Lise Forell, Freizeitgestalung, óleo sobre tela, 50 X 60, 2000. Acervo da artista
Lise Forel nasceu em Brno (Tchecoslováquia) em 1924, onde testemunhou cenas de violência e maus tratos. Amedrontada, fugiu com sua família para a Bélgica e de lá para a França, onde conseguiram vistos emitidos pelo embaixador brasileiro Souza Dantas. Partiram de Marselha em dezembro de 1940, mas foram presos e enviados para o campo de refugiados Sidi-El Ayashi, em Casablanca (Marrocos). Libertados, vieram para o Brasil onde desembarcaram em 25 de setembro de 1941. Acervo da autora -Arqshoah/Leer-USP.
Resgatando histórias
Uma das principais atividades do Núcleo de Pesquisa ArqShoah é registrar as memórias de refugiados, exilados e sobreviventes do Holocausto. A professora Maria Luiza Tucci Carneiro, responsável pelo laboratório Leer, diferencia esses três grupos pelos caminhos que suas vidas traçaram. São considerados refugiados aqueles que conseguiram fugir da perseguição nazista sem passar pelos campos de concentração, como Mathilde e Max Maier, e viveram longe de suas comunidades de origem, mas tiveram a oportunidade de retornar depois de algum tempo. Os exilados são refugiados que pretendiam voltar para suas comunidades, mas não conseguiram. Por fim, são chamados de sobreviventes aqueles que passaram por campos de extermínio e perderam a maior parte de sua família.
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Todas essas personagens, diz Maria Luiza, mantêm uma forte conexão com suas comunidades de origem. “É uma parte da sua identidade. Se houvesse uma janela para a alma, se pudéssemos olhar dentro deles, veríamos que eles ainda lembram das suas casas, dos seus familiares. Eles não perderam suas raízes, mesmo que, ao mesmo tempo, tenham um trauma por terem sido perseguidos e terem perdido seus pais, irmãos, avós”, conta a professora.
Segundo ela, a exposição foi chamada de Entre Mundos porque assim se sentem os refugiados do Holocausto. “Há uma sensação de perda, de dor, e isso acaba criando uma ruptura nas suas trajetórias de vida, que é expressa nas obras produzidas durante o período de refúgio.”
Como os sobreviventes, refugiados e exilados já se encontram em idade muito avançada, também é função do ArqShoah encontrar documentos oficiais que ajudem a reconstituir a história dessas pessoas, já que, durante o depoimento, elas podem esquecer de contar algumas situações ou ficarem muito sensibilizadas ao lembrar do ocorrido.
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Histórias de refugiados
Conforme as tropas e a ideologia nazistas avançavam sobre o leste da Europa, as rotas de fuga se proliferavam na direção oposta, em busca de países aliados que recebessem milhares de pessoas perseguidas por pertencerem a alguma minoria.
Dentre essas pessoas, encontravam-se intelectuais, artistas, professores, advogados, médicos e engenheiros que, após a ascensão de Hitler, passaram por dificuldades financeiras, tiveram que largar suas carreiras e perderam a maior parte de seus familiares.
Como previu o tio de Mathilde Maier, era insustentável permanecer na Alemanha nazista. Assim como começaram a fazer várias famílias judias, a artista e seu marido, Max, decidiram comprar terras em Rolândia, através da Companhia de Terras Norte do Paraná, que fazia negócios em Berlim. Teoricamente, a posse dessas terras asseguraria a vinda deles ao Brasil quando precisassem fugir da perseguição nazista. Na prática, no entanto, o casal teve que pagar 5 mil marcos ao cônsul brasileiro para que fosse concedido o visto. Em sigilo, o cônsul seguia as orientações de circulares secretas do governo Vargas, que impediram a entrada de aproximadamente 14 mil judeus no Brasil.
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Durante as pesquisas, a professora Maria Luiza encontrou mais de 20 circulares secretas enviadas aos cônsules brasileiros de todas as partes do mundo. Navios com centenas de pessoas foram proibidos de desembarcá-las, obrigando-as a voltar para a Europa e buscar uma nova rota de fuga — quando não eram capturadas para ir aos campos.
Como pagaram o valor integral pedido pelo cônsul, Mathilde e Max conseguiram um visto que dizia que eram cristãos. Outras famílias, que não tiveram condições de pagar o valor, não o conseguiram. Entre 1935 e 1938, último ano de Mathilde e Max em Frankfurt, o casal ajudou dezenas de outros judeus a conseguirem os documentos para fugir.
Nesse momento, a atuação de cristãos, que não eram perseguidos pelos nazistas, foi indispensável para salvar a vida de muitas pessoas — ao providenciar documentos falsos, escondê-las em suas casas ou ajudá-las a atravessar fronteiras. A brasileira Aracy Guimarães Rosa, esposa de Guimarães Rosa, por exemplo, era funcionária do consulado em Hamburgo e levava judeus no porta-malas de seu carro até as fronteiras da Alemanha para que pudessem atravessá-las. Sua ajuda foi reconhecida pelo Museu do Holocausto, o Yad Vashem, em Jerusalém, e hoje é conhecida como o “Anjo de Hamburgo”.
Ao chegar ao Brasil, Max e Mathilde se estabeleceram em Rolândia, como fizeram dezenas de outras famílias judias. “Quando os nossos primeiros livros saíram dos caixotes de mudança para as estantes rústicas de madeira, nos sentimos aliviados… Começamos a nos sentir em casa”, descreve a artista.
Maria Luiza, que foi a responsável por entrevistar Mathilde em 1989, conta que, enquanto a pintora fugia, ela plantava um pequeno jardim por onde passava. As sementes que nasciam num país eram plantadas no destino seguinte. Nas décadas de 70 e 80, Mathilde publicou sua autobiografia, Os jardins da minha vida, na Alemanha, Inglaterra e Brasil.
Para a professora Maria Luiza, “a base de dados do núcleo ArqShoah não é apenas o resultado de uma pesquisa. É uma proposta de implementação de ações públicas para conscientizar a comunidade acadêmica e civil dos perigos das ideias racistas”.
“É preciso conscientizar educadores da rede pública e particular sobre a importância do ensino do tema do Holocausto e do racismo, além de cultivar iniciativas que possam incentivar o respeito aos direitos humanos e a produção também de uma cultura de paz e tolerância”, alerta.
A exposição Entre Mundos: O legado dos refugiados do nazifascismo em tempos de intolerância — Brasil, 1933-1945 estará em cartaz nos dias 27 e 28 de maio, no Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), Rua Bernardino de Campos, 145, Brooklin Paulista, em São Paulo.
(Reportagem de Larissa Lopes - Jornal da USP)