Guerra Civil Americana

Considerado o pior conflito do território norte-americano, a Guerra Civil Americana terminou com um saldo de 600 mil mortes e o fim da escravidão nos Estados Unidos

Por
Lívia Lemos
Data de Publicação

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“Para muitos intelectuais, a guerra civil deve ser lembrada como uma continuação da revolução americana, por ter trazido a abolição e a inclusão da população negra (masculina) à comunidade política do país”, destaca Breno Barlach [Montagem: Renan Braz]
 

Iniciada em 1861, a Guerra Civil Americana, também conhecida como Guerra de Secessão, foi um conflito entre as regiões Norte e Sul dos Estados Unidos e que resultou em mais de 600 mil mortos. A principal razão para o desentendimento entre ambas as regiões foi a discordância sobre a abolição da escravidão. Enquanto os estados do Norte (União) eram a favor da abolição, os do Sul (Estados Confederados da América) eram contra.

Embora o Norte tenha defendido a libertação dos povos negros, o motivo por trás desse desejo não era alcançar uma sociedade igualitária, mas sim que essa população negra livre pudesse integrar o trabalho assalariado e movimerntar a economia industrial, que estava começando a se desenvolver no Norte. “Apesar da discordância sobre a escravidão, o mainstream do pensamento político norte-americano concordava que a população negra não era parte do povo americano”, destaca Breno Barlach, cientista político da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Confira a entrevista completa com o pesquisador:

Serviço de Comunicação Social: O que foi a Guerra de Secessão? Quais motivos desencadearam o conflito entre o Norte e o Sul?

Breno Barlach: A Guerra Civil Americana foi o resultado de 84 anos de conflitos políticos entre os estados escravistas (concentrados no Sul do país) e os estados que haviam abolido a escravidão. Desde a independência americana, em 1776, diversos acordos frágeis foram realizados para tentar conter o conflito. Ainda na aprovação da Constituição, a proibição do tráfico de escravos foi “compensada” com a inclusão de uma cláusula legislando a captura de escravizados fugidos, por exemplo. No entanto, a partir de 1820 e, em especial, de 1850, a expansão para o Oeste e o crescimento de um pensamento abolicionista aumentou a tensão entre Sul e Norte. Cada novo estado incorporado à União significava novos deputados (representatives) e senadores. A disputa sobre a definição se os novos estados seriam ou não escravistas culminou na Guerra em 1860. De forma muitíssimo resumida, a disputa política em torno da escravidão naquele momento se dava em três pólos:

1. Pró-escravidão – majoritariamente sulista

2. Pró-abolição – em geral, da Nova Inglaterra

3. Pró barreiras de expansão da escravidão (mas mantendo-a onde já existia) – em geral nas áreas do meio oeste (Illinios, Michigan, Nebraska, etc.).

O Partido Republicano é fundado em torno do tema da abolição e disputa sua primeira eleição em 1856. Em 1860, já mais consolidado, Abraham Lincoln vence a eleição com uma plataforma baseada na “Free Labor” – trabalho livre, em geral significando um apoio ao terceiro pólo citado acima. A sua vitória eleitoral, sem levar nenhum estado sulista, faz com que os estados escravistas decidam abandonar a União. Esse é o começo da guerra.

Serviço de Comunicação Social: A Guerra de Secessão é conhecida como um impasse em relação a abolição da escravatura, no qual o Norte era a favor e o Sul contra. Quais motivos estão por trás de cada um dos lados terem divergências em relação à abolição?

Breno Barlach: De um ponto de vista material, podemos olhar a economia de meados do século 19 dividida entre grandes latifundiários (plantation), indústrias e pequenos agricultores. A divisão dos três pólos acima segue, de forma simplificada, esses recortes. A economia do Sul era altamente agrária e dependente de grandes latifundiários, enquanto o nordeste, em especial a Nova Inglaterra já possuía produção industrial. A expansão para o Oeste, nos territórios que decidiram manter-se livres de escravidão, era dominada por pequenas propriedades, em geral em nome de homens brancos. É importante ressaltar que aqueles que defendiam uma barreira para a expansão da escravidão para o Oeste não o faziam em nome de uma igualdade entre os homens, mas também para evitar a “contaminação” daquelas terras por pessoas negras – alguns estados da região, como Ohio, tinham leis proibindo a entrada de pessoas negras, mesmo tendo abolido a escravidão.

Mas a história não ocorre apenas como consequência das condições materiais. Os Estados Unidos foram fundados ao redor de dois documentos que simbolizavam ideias sobre o significado e futuro do país: a Constituição e a Declaração de Independência. Enquanto a primeira trazia elementos de garantia da ordem escravocrata (como a cláusula de captura de escravos fugidos, ou a contagem de cada escravo como 3/5 de pessoa para fins de definição do número de representantes em cada colégio eleitoral), a Declaração trazia elementos de uma linguagem pretensamente universalista.

A declaração de independência também encontrava ecos em comunidades evangélicas que cresciam na região norte do país, pregando a valorização do trabalho (portanto a condenação do ócio do senhor de escravos), a proibição do consumo de álcool e o fim da escravidão. Memórias de pessoas que haviam fugido do sul para o norte do país tornaram-se best sellers.

Esse pensamento anti-escravista e a percepção de que o trabalho servil seria contraditório com os valores que fundavam a sociedade norte-americana consolidou-se no Norte do país, enquanto no Sul textos apologistas, com base nas escrituras ou em clássicos gregos, criavam duas linguagens políticas difíceis de serem conciliadas.

É importante ressaltar que, apesar da discordância sobre a escravidão, o mainstream do pensamento político norte-americano concordava que a população negra não era parte do povo americano. Até meados da Guerra, mesmo Lincoln defendia políticas de colonização (enviar os libertos para o Haiti, Libéria ou outra parte do mundo). São os intelectuais negros, especialmente Frederick Douglass, que disputam essa concepção que será alterada ao longo do conflito.

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância da Guerra de Secessão para a sociedade e história norte-americanas?

Breno Barlach: Pouco antes da Guerra, a Suprema Corte definiu a cidadania americana como um privilégio da população branca do país. Essa decisão, até hoje lembrada como a mais vergonhosa da corte em sua história, foi revertida com a aprovação das 3 emendas à constituição do pós guerra: 13ª emenda, que abole a escravidão, 14ª emenda, que define a cidadania americana como privilégio de todos que nascerem no território americano e 15ª emenda, que define o direito a voto independente de cor/raça.

Para muitos intelectuais, a guerra civil deve ser lembrada como uma continuação da revolução americana, por ter trazido a abolição e a inclusão da população negra (masculina) à comunidade política do país. Nos 12 anos que se seguiram à Guerra, durante a ocupação militar do Sul do país, os Estados Unidos experimentaram uma revolução de inclusão política, com políticos negros, recém libertos, eleitos para o Congresso, políticas de apoio à escolarização da população liberta, entre outros.

O fim da ocupação militar levou ao retorno do domínio branco no Sul, iniciando o período de segregação e exclusão que só seria alterado de maneira significativa nos anos 1960. A guerra ainda pauta a política norte-americana. As clivagens raciais e entre estados que foram escravistas e estados livres ajudam muito a explicar a política de lá até hoje. Parte da retórica de Donald Trump, por exemplo, passava por criticar a retirada de monumentos confederados de estados sulistas. Os protestos do Black Lives Matter contra a violência policial mostram como a política de segurança de países de histórico escravista, como os EUA e o Brasil, ainda carrega um viés racista, mesmo 150 anos após a abolição.

Serviço de Comunicação Social: Para além do que viria a ser tornar os Estados Unidos, como a vitória do Norte na Guerra de Secessão influenciou politicamente o resto do mundo?

Breno Barlach: Em seu The Land of Too Much: American Abundance and the Paradox of Poverty (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2012), Monica Prasad argumenta que a produtividade do campo nos Estados Unidos teve um salto tão grande após o fim da escravidão que teria gerado uma deflação global de alimentos, barateando os custos em todos os países e também quebrando os produtores locais (em especial, na Europa). Parte da hegemonia americana do século 20 teria sido causada pela vitória do Norte em meados do século 19. Além da deflação de alimentos, a Guerra impulsionou a indústria do Norte e ajudou a interconectar o país, por meio das estradas de ferro construídas pelo exército. Essa expansão industrial também é parte do que causou a hegemonia americana no século seguinte.

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Breno Barlach é graduado em Ciências Sociais (2011) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo e mestre em Ciência Política (2016) pela mesma instituição. Realizou parte do seu mestrado, intitulado E onde esteve o povo? Nacionalismo e exclusão no período da Guerra Civil Americana (1861-1865), na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, com financiamento da FAPESP.