Nascimento de Murilo Rubião

Pioneiro da literatura fantástica no Brasil, escritor mineiro mescla inspiração em grandes autores, como Machado de Assis, com elementos insólitos e magia

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“Em seus contos, vão se mesclando cores, as mais coloridas, seres sobrenaturais, com atitudes naturais do cotidiano, o insólito inesperado para espanto de personagens entediadas, a magia do fantástico na construção de enredos de finais surpreendentes, quase sempre pungentes”, segundo Jiro Takahashi (Arte: Gabriela Ferrari Toquetti/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Jornalista e escritor mineiro, Murilo Rubião nasceu em 1º de junho de 1916. Suas obras eram singulares e não se encaixavam nas escolas literárias de sua época, o que fez com que não fossem devidamente reconhecidas no início de sua carreira. Anos mais tarde, porém, seus contos foram resgatados pela Editora Ática e o sucesso desses livros foi consolidando Rubião como um dos maiores contistas do país.

A originalidade do autor reside principalmente no seu estilo fantástico que utiliza seres sobrenaturais, elementos insólitos e enredos absurdos, inserindo a magia no cotidiano. Sua escrita inusitada, unida às influências de Machado de Assis – que era declaradamente sua maior inspiração – e ao seu cuidado quase obsessivo com as palavras, fez de Murilo Rubião um escritor de destaque na literatura brasileira, aclamado por grandes autores e críticos literários como Carlos Drummond de Andrade e Jorge Schwartz, respectivamente.

As criações de Rubião são tão únicas que até hoje não há muitos autores com seu mesmo estilo, que parece ir contra o racional: “A moda recente, e ainda atual, de narrativas distópicas, apesar de muito bem elaboradas nos ambientes fantasiosos, apresenta ainda as relações de causalidade temporal e espacial de modo lógico. Murilo Rubião parecia se divertir em seus contos rompendo com essa causalidade de fundo lógico. Nele, os fatos e as personagens se transmutam por efeitos mágicos, fantásticos e até mesmo sobrenaturais”, explica Jiro Takahashi, mestre em Linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e editor de obras de Rubião. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Murilo Rubião, para os leitores que ainda não o conhecem?

Jiro Takahashi: Murilo Rubião foi um escritor mineiro, considerado o pioneiro da literatura fantástica no Brasil. Nasceu em 1916, em Carmo de Minas, mas se mudou para Belo Horizonte, onde fez seus estudos e formou-se em Direito em 1942. Ocupou diversos cargos públicos em Minas e aposentou-se como Diretor da Imprensa Oficial. Seu grande legado desse período foi a fundação do Suplemento Literário de Minas Gerais, uma das mais importantes publicações literárias do século 20.

Ele foi o precursor da literatura fantástica no Brasil, com a publicação de seu livro de contos, O Ex-Mágico, em 1947 pela Editora Universal, a mesma que no ano anterior havia publicado Sagarana, de Guimarães Rosa. A obra tinha sido recusada por inúmeras editoras, mas com seu livro de estreia teve uma boa receptividade, embora muito seletiva. Sua literatura muito singular não se ligava a nenhuma escola literária, a nenhum movimento da época. Resultado: caiu no ostracismo literário. Quase trinta anos depois, no final de 1974, a Editora Ática resgatou seus contos, inaugurando a Coleção Nosso Tempo com a edição de seu Pirotécnico Zacarias. O enorme sucesso de crítica e de público deu o reconhecimento a Murilo Rubião como um dos maiores contistas do país.

Jorge Schwartz, autor da primeira tese sobre Murilo Rubião, dizia que “a realidade de Murilo Rubião é quase uma realidade de ficção. No apartamento de Belo Horizonte, grande número de obras inspiradas nos seus contos. Um quadro repleto de coloridos dragões, no meio da sala.” Enfim, um ambiente insólito, um autor insólito e uma literatura insólita.

Ele dizia explicitamente que a maior inspiração para seus contos fantásticos tinha sido Machado de Assis. Além dele, suas influências marcantes foram os contos de fadas, Dom Quixote, o Velho Testamento (apesar de confessadamente agnóstico), a mitologia grega e as histórias das Mil e Uma Noites. Inspirado por eles, criou uma literatura fantástica totalmente singular, única, instigante.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita do autor? Quais das suas obras você considera mais emblemáticas e por quê?

Jiro Takahashi: Alguns elementos chamam imediatamente a nossa atenção como leitores: um rigor obsessivo no uso de suas variantes estilísticas, comparável ao de Machado ou Flaubert; alusões quase explícitas a cenas do Velho Testamento dentro do universo mágico de seus contos; as metamorfoses nas estruturas e nos pontos de vista de seus contos seguindo paralelamente as metamorfoses por que passam suas personagens. Talvez valha a pena destacar alguns contos emblemáticos de sua trajetória criativa.

Por exemplo, o que podemos ler e sentir no Ex-Mágico da Taberna Minhota: o narrador-personagem, já de certa idade, percebendo, sem espanto algum, seus cabelos ficando grisalhos diante do espelho da taberna, retirando de seu bolso, com tédio, o dono do restaurante. Este, sim, perplexo, teve a ideia de oferecer-lhe um emprego de mágico para entreter os fregueses. Este conto realça, de um lado, a manifestação pública do poder incrível do mágico e, de outro lado, seu sentimento de impotência, desencantado diante dos poderes da burocracia, que emperram todas as magias. Uma narrativa fantástica, que normalmente seria repleta de encantos, neste caso é tomada por frustrações de um ex-mágico desencantado.

Como nos referimos às metamorfoses como um de seus temas obsessivos, nada melhor que mencionar outro conto, Teleco, o Coelhinho. Neste conto, Murilo Rubião transgride radicalmente os princípios de causalidade e dualidade entre sujeito e objeto. O modo como o coelhinho — um animal companheiro de mágicos na tradição humana – vai se transformando em tudo, de maneira aparentemente aleatória e casual, até assumir finalmente a forma humana: um impacto instantâneo em um choque para o leitor.

O insólito na sua literatura fantástica vai além das vertiginosas metamorfoses por que passam suas personagens e, às vezes, os próprios narradores. O exagero gigantesco ou pantagruélico também surge como tema de outra vertente de seus contos, como Bárbara, O Edifício e A Armadilha. Este último conto pode ilustrar a famosa “teoria de iceberg”, atribuída a Hemingway. O texto desse conto explicita muito pouco de um mar de possibilidades interpretativas dos detalhes da relação entre as duas misteriosas personagens. A voracidade de Bárbara e a construção do altíssimo edifício tocam o absurdo. As constantes transformações e o caráter infindável do absurdo edifício podem estar ligados ao aspecto sempre mutável de suas transformações nas reescrituras infindáveis de seus contos.

Quanto a O Pirotécnico Zacarias, o narrador, à moda de Brás Cubas, de Machado, é o próprio Zacarias morto. Ou dado apenas como morto, depois de ser atropelado por um carro? A policromia desse conto está de acordo com a profissão de Zacarias, trabalhando com explosões de cores, como estrelas no céu, as mesmas estrelas que atraem os sonhos e desejos de Bárbara, no conto com seu nome.

Em seus contos, vão se mesclando cores, as mais coloridas, seres sobrenaturais, com atitudes naturais do cotidiano, o insólito inesperado para espanto de personagens entediadas, a magia do fantástico na construção de enredos de finais surpreendentes, quase sempre pungentes.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Jiro Takahashi: Com o aumento da produção literária nos últimos anos, inclusive com o surgimento cada vez maior de cursos e oficinas de criação literária, sinto que hoje as principais contribuições de Murilo Rubião estão ligadas à sua postura e dedicação na escrita literária. Não eram apenas as suas narrativas que os estudos críticos destacavam. O modo como ele escrevia, e principalmente como reescrevia, era sempre muito comentado. Ele tinha um cuidado quase obsessivo com a palavra mais adequada possível ao que ele estava querendo transmitir. Esse cuidado com suas constantes reescrituras era muito conhecido por todos. Talvez o mais longo caso de reescritura dos contos de Murilo Rubião tenha acontecido com o conto O Convidado. Os escritores Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, seus grandes amigos, testemunharam não só o início da criação desse conto, como todo o seu processo de reescritura ao longo de anos, terminando apenas com a publicação do conto 26 anos após o início. É muito difícil encontrar outro caso semelhante em todas as literaturas.

Uma coisa que ele fazia quando queria beber da fonte de Machado beirava o insólito. Ele chegava a copiar, à mão, livros inteiros de Machado como um treino estilístico. Semanas inteiras eram dedicadas a simples cópias dos contos e romances de Machado. Quando alguém questionava esse hábito totalmente espantoso e inusitado, ele respondia candidamente que, com isso, sua mão passaria pela experiência de escrever aqueles parágrafos e provavelmente estaria carregando uma “memória” deles.

Esse cuidado com a reescritura o fazia modificar trechos inteiros de seus contos de edição para edição. Chegava a mudar o foco narrativo das obras. Isso o obrigava a alterar praticamente o conto todo. Essa paciência que não aceita as urgências absurdas quando se trata de arte literária é uma grande lição que nos deixa Murilo Rubião. Essa paciência fez com que ele esperasse quase trinta anos para viver o sucesso que foi a edição de O Pirotécnico Zacarias, inaugurando a Coleção Nosso Tempo, em 1974. A partir de então, foi largamente reconhecido por seu talento e, hoje, dezenas de teses se debruçam sobre seus contos.

Sobre como suas obras repercutem atualmente, pelo modo singular de construir suas personagens e seus enredos, não percebo muito essa repercussão na literatura produzida hoje. A moda recente, e ainda atual, de narrativas distópicas, apesar de muito bem elaboradas nos ambientes fantasiosos, apresenta ainda as relações de causalidade temporal e espacial de modo lógico. Murilo Rubião parecia se divertir em seus contos rompendo com essa causalidade de fundo lógico. Nele, os fatos e as personagens se transmutam por efeitos mágicos, fantásticos e até mesmo sobrenaturais. Eram as marcas de suas fontes, suas influências que ele explicitava: contos de fadas, narrativas bíblicas, além dos delírios de Dom Quixote. Elas estão todas presentes em seus contos, que instigam os leitores atuais a conhecer o mundo mágico de Murilo Rubião.

Finalizando, vale a pena ler o que Carlos Drummond de Andrade, ainda em 1947, disse a respeito de seu livro de estreia. “O Ex-Mágico é uma delícia. Ele nos transporta para além de nossos limites, sem entretanto jamais perder pé no real e no cotidiano. [...] E por mais absurdas que sejam as novas relações estabelecidas por você entre as coisas do homem, a verdade é que elas não são mais absurdas do que as condições de vida normal, controlada pela razão: eis a lição amarga que se tira de sua sátira, tão poética e tão rica de invenção”.

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Meu caro Murilo”. In: Murilo Rubião – O centenário do mágico. Belo Horizonte: Suplemento Literário de Minas Gerais, 2016. p. 36.

SCHWARTZ, Jorge. “O fantástico em Murilo Rubião”. In: Murilo Rubião – O centenário do mágico. Belo Horizonte: Suplemento Literário de Minas Gerais, 2016. p. 4.

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Jiro Takahashi é mestre em Linguística pela FFLCH-USP. É graduado e licenciado em Letras pela USP. É professor universitário de língua, linguística e literatura, tendo lecionado no Unibero, na Faculdade Paulista de Artes e Casa Educação / Instituto Singularidades. Atualmente, é docente do Centro Universitário FAM e professor e consultor da Universidade do Livro, vinculada à Unesp-SP. Coordena o Programa de Aprimoramento em Tradução Literária da Casa Guilherme de Almeida – Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo. Tem mais de 50 anos de atuação em direção editorial nas editoras Ática — foi criador de várias coleções literárias, como a Vaga-Lume, a Para Gostar de Ler, a Nosso Tempo e a Coleção de Autores Africanos — Nova Fronteira, Editora do Brasil, Grupos Ediouro e Rocco. Atualmente, é consultor das editoras Zapt e Nova Aguilar, respondendo pela edição de Obras Completas de clássicos nacionais e internacionais.