Bailes funk são alvo de violência e opressão pela cidade de São Paulo

Pesquisa da USP analisa incômodo de parte da população diante das práticas de jovens periféricos

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

O educador Luiz Paulo Ferreira Santiago analisou, em sua dissertação de mestrado, os conflitos provocados pelos bailes na zona sul de São Paulo (Foto: Wikipedia)

O funk, nas últimas décadas, vem se consolidando como um dos gêneros mais ouvidos em São Paulo. Com isso, também se estabeleceram na cidade os bailes funk (ou fluxos), muito populares entre a juventude periférica. As práticas desses bailes e o incômodo que eles causam em parte da população revelam uma disputa entre as diferentes formas de experienciar a cidade, segundo pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

O educador Luiz Paulo Ferreira Santiago analisou, em sua dissertação de mestrado, os conflitos provocados pelos bailes na zona sul de São Paulo. O pesquisador estudou a estética funkeira e observou algumas práticas comuns nesse cenário, buscando entender por que o funk é tão incômodo para certas parcelas da população.

A princípio, a queixa central é evidente: a música alta incomoda os vizinhos. O que ocorre, segundo Santiago, é que as profundas desigualdades sociais fizeram com que a classe trabalhadora migrasse, cada vez mais, para as margens da cidade, construindo do zero, de forma improvisada e sem auxílio do Estado, suas casas – fenômeno que a arquiteta Ermínia Maricato chamou de autoconstrução. Neste contexto, a constituição de bairros populosos, aliada à ausência de espaços destinados a práticas de lazer entre os jovens, fez com que os bailes funk aparecessem como espaços em que eles passaram a ser ouvidos e reconhecidos.

Além da música, o pesquisador observou nos bailes funk práticas como os graus (manobras com motos proibidas por lei) e a dança com umbrellas, ou guarda-chuvas, que funcionam como manifestações artísticas do baile e fazem parte da cultura periférica: “Mesmo em um contexto opressivo, há criatividade, inventividade e processos de ressignificação de objetos que foram criados para outros fins. O universo funkeiro faz essa ressignificação da cidade como um todo, tensionando nossa perspectiva moral e a forma como encaramos a cidade”, explica.

As letras dos funks também incomodam, principalmente por apresentarem conteúdo de cunho sexual, muitas vezes de forma explícita. Existe, ainda, uma questão de gênero colocada por essas letras, sobretudo quando são cantadas por artistas femininas: "elas estão reproduzindo a misoginia e a objetificacão da mulher ou estão exercendo suas sexualidades com liberdade?", questiona Santiago, reproduzindo uma discussão antiga entre as femininas e evidenciando as diversas discussões introduzidas pela participação das mulheres no funk.

De acordo com o educador, a pesquisa mostra a opressão e a violência da cidade diante do desejo dos jovens periféricos de ocuparem novos espaços: “Uma pessoa negra circulando na Avenida Paulista em uma bicicleta com uma bag do iFood é familiar e reconhecível, e não causa tensão porque é isso que se espera dela. É diferente de uma pessoa negra em uma multidão, se divertindo, exercendo sua sexualidade de uma forma ‘não tradicional’ e explorando a vida noturna. A pesquisa revela essas duas cidades em conflito”.

São Paulo é, portanto, palco de constantes tensões, mas o incômodo da população com os fluxos é apenas um efeito colateral da desigualdade. “Acho que o baile é uma manifestação da tentativa de viver. Esses jovens não costumam ser escutados, então o baile é um lugar de reconhecimento mútuo, de reconhecimento de grupo”, conclui Santiago.

A dissertação de mestrado O baile funk na encruzilhada: uma etnografia dos fluxos de rua na zona sul de São Paulo foi defendida por Luiz Paulo Ferreira Santiago em maio de 2024 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e orientada pelo professor Heitor Frúgoli Junior.

A reportagem em áudio está disponível no Spotify: