Política do Café com Leite

Modelo de governo alternava figuras paulistas e mineiras no executivo federal para estabilizar a política nacional e beneficiar as elites agroexportadoras de café da época

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

De acordo com Jullyana Luporini, “garantir a manutenção do sistema oligárquico e as políticas de sustentação deste sistema (como a Política do Café com Leite) significava garantir que a classe proprietária dos produtores e comerciantes de café pudessem manter a sua hegemonia política e favorecer a expansão dos seus negócios” (Arte: Pedro Seno/ Serviço de Comunicação Social FFLCH)

Após a Proclamação da República do Brasil, em 1889, o novo governo federalista criou a Política dos Governadores e, inserida nela, a Política do Café com Leite. Esta última descreve “uma aliança firmada entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais para o revezamento do poder executivo”, segundo Jullyana Luporini de Souza, pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A Política dos Governadores consistia no governo federal entregar autonomia aos assuntos dos estados em troca de apoio político. Essa aliança serviu para estabilizar e pacificar o país, recém transformado em uma república. Ao não intervir nas questões estaduais, o governo recebia suporte nas eleições e se consolidava, impedindo forças oposicionistas.

Junto a isso, foi fortalecido o “mandonismo”, no qual a figura do coronel passou a ter controle dos resultados eleitorais para favorecer os interesses dos governos estaduais e federal. Nesse contexto, a Política do Café com Leite aliou o poderio econômico de São Paulo com o grande colégio eleitoral de Minas Gerais para garantir governabilidade ao presidente da república.

Segundo Jullyana, “este sistema estava orientado, por assim dizer, aos interesses do mercado agroexportador de café, produto que representava a maior parte das exportações e que gerava um volume aviltante de receitas para a União”. Assim, ambas as partes se beneficiavam do acordo.

Como resultado, as elites do país se mantiveram com influência política e poder econômico. Jullyana ressalta que o benefício não foi apenas para os estados do sudeste, mas também para cada oligarquia regional do país. Mesmo assim, a vantagem econômica que o café possuía foi a grande responsável pelo desenvolvimento dos estados paulista e mineiro e, também, por exemplo, da industrialização de São Paulo. 

Apesar desse passado ter favorecido fortemente os estados do sudeste, que mantêm sua força econômica até hoje, Jullyana complementa que “houve mudanças significativas que aconteceram no contexto político e social brasileiro através de muita luta e organização das camadas sociais mais baixas da população brasileira. Se for para fazer um paralelo e encontrar esse movimento de longa duração, me atrevo a dizer que a lógica dos interesses da terra continuam atuais.” Confira a entrevista completa com a pesquisadora:

Serviço de Comunicação Social: O que foi a Política do Café com Leite, em termos gerais?

Jullyana Luporini de Souza: Em termos gerais, a chamada Política do Café com Leite foi uma aliança firmada entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais para o revezamento do poder executivo com anuência das outras oligarquias regionais.

Esta aliança está inserida em uma política mais ampla conhecida como Política dos Governadores que foi instituída pelo presidente Campos Salles com o objetivo de estabilizar e pacificar a recente república federativa do Brasil. Com isso, o governo federal prometia não intervir nos assuntos dos estados em troca do apoio dos governadores ao poder executivo. Na prática, isso impedia a formação de uma oposição republicana ao governo federal, já que apenas os congressistas da base do governo conseguiam se eleger, e também favoreceu a autonomia irrestrita dos estados.

A Política dos Governadores fortaleceu o mandonismo local através da figura do coronel, que virou um aliado fundamental na contenção da oposição e na manipulação dos resultados eleitorais através da truculência e do paternalismo, para garantir resultados eleitorais favoráveis aos interesses do executivo e dos governos estaduais.

Podemos dizer, então, que a Política do Café com Leite foi uma peça fundamental de um mecanismo de estabilização das oligarquias dentro do recente sistema federalista instaurado na República que beneficiou principalmente os interesses da elite agroexportadora do café.

Minas Gerais foi escolhido como o outro estado para o revezamento no poder executivo devido ao seu grande colégio eleitoral. Segundo o historiador Joseph Love, Minas possuía o maior colégio eleitoral do Brasil, sendo estratégico do ponto de vista político. Com o poderio econômico de São Paulo e a influência do colégio eleitoral mineiro, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) conseguiam controlar as eleições e obter o apoio das demais elites agrárias do país.

Serviço de Comunicação Social: O que essa política descreve sobre a realidade socioeconômica do Brasil do início do século 20?

Jullyana Luporini de Souza: Como vimos, a política do Café com Leite deve ser entendida como parte de mecanismo político que visava garantir a governabilidade e estabilização das oligarquias no sistema federalista republicano. Este sistema estava orientado, por assim dizer, aos interesses do mercado agroexportador de café, produto que representava a maior parte das exportações e que gerava um volume aviltante de receitas para a União, e principalmente para São Paulo, o maior produtor econômico do produto. Assim, garantir a manutenção do sistema oligárquico e as políticas de sustentação deste sistema (como a Política do Café com Leite) significava garantir que a classe proprietária dos produtores e comerciantes de café pudessem manter a sua hegemonia política e favorecer a expansão dos seus negócios.

Mas daí você me pergunta: como uma política governamental pode favorecer a produção cafeeira? Bom, os interesses da elite ligada ao café foram centrais para o movimento republicano garantir a sua vitória sobre o partido conservador e o Império, a descentralização e autonomia dos estados defendida pelo movimento republicano hegemônico foi um fator determinante para que a proclamação da República ganhasse contornos mais pragmáticos, diferente da radicalidade expressada nos movimentos republicanos dos países vizinhos do Brasil. A República beneficiaria os interesses do grande capital agroexportador através da construção de um modelo político que garantiria total autonomia para o desenvolvimento da lavoura do café.

O modelo federalista previa que os impostos sobre as exportações voltassem para os estados, mas não só isso: a importância que o Partido Republicano Paulista ganhou a nível nacional contribuiu para que a política monetária e fiscal fosse fortemente influenciada pelos interesses do café. Para se ter uma ideia, a receita do estado paulista se multiplicou dez vezes com a instauração do regime republicano. Outro fator que é relevante e que abarca todas essas medidas que estamos discutindo é a terra. A predominância dos interesses da burguesia cafeeira está relacionado fortemente com a expansão da fronteira agrícola necessária para a monocultura do café. A necessidade de terras era inerente ao poderio da lavoura, o que significava na prática a incorporação de terras devolutas e a expulsão de pequenos agricultores dos seus lotes. Apenas uma legislação ligada aos interesses dos grandes proprietários poderia oferecer o respaldo jurídico que garantisse a incorporação dessas terras sem grandes dificuldades. A violência produzida pelo mandonismo local também era uma forma de reprimir qualquer barreira à expansão da fronteira agrícola, mais do que isso também garantia farta mão de obra barata nas lavouras. Ou seja, como podemos ver é um sistema político que está inteiramente subordinado aos interesses do grande capital agroexportador que nesse momento via no café a resposta para a expansão e acumulação do capital.

Serviço de Comunicação Social: Como essa política poderia nos ajudar a entender o desenvolvimento das regiões do Brasil no contexto atual? É possível afirmar que ela repercute até os dias atuais?

Jullyana Luporini de Souza: A política do Café Com Leite beneficiou São Paulo de uma maneira bastante evidente. O exemplo mais conhecido é a industrialização que foi beneficiada pelo capital acumulado dos negócios do café que foram investidos nos primeiros empreendimentos da indústria no estado. A região sudeste como um todo se desenvolveu fortemente com a Política dos Governadores e a Política do Café com Leite, mas é necessário não esquecer que é a relevância econômica do café que sustentou toda essa política que vigorava em todo o país.

É evidente que o poderio econômico do café e a hegemonia política de São Paulo e Minas Gerais acabaram ofuscando e impedindo que estados produtores de outros commodities pudessem alcançar a receitas dos estados do sudeste, mas é preciso olhar com mais cuidado para essa relação: os estados e principalmente as oligarquias regionais se beneficiaram do arranjo político instituído pela República. Inclusive, economicamente os estados “periféricos” apostavam no mercado interno como uma forma de garantir a expansão e a comercialização de seus produtos. A nível político, as forças políticas majoritárias tinham ampla margem de manobra no pacto federativo, a autonomia, por exemplo, perpetuava as oligarquias e impedia que qualquer interesse de outros grupos políticos e interesses contrários à manutenção do poder dos coronéis fossem atrapalhados. Ou seja, a política do Café com Leite não beneficiou só uma oligarquia, mas, através da negociação, permitiu que o poder continuasse nas mãos das elites locais, elites essas que dominavam há séculos o território brasileiro.

O interessante da sua pergunta é pensar se ainda encontramos permanências nesta política de beneficiamento das oligarquias regionais no dia de hoje. Acho que não podemos partir da premissa que nada mudou na política, houve mudanças significativas que aconteceram no contexto político e social brasileiro através de muita luta e organização das camadas sociais mais baixas da população brasileira. Se for para fazer um paralelo e encontrar esse movimento de longa duração, me atrevo a dizer que a lógica dos interesses da terra continuam atuais.

O conflito que envolve terra, poder econômico e sustentação de uma arquitetura política que favorece os grandes proprietários e seus interesses pode ser visto no Congresso Nacional, não só no pequeno povoado no rincão do Brasil, como estamos acostumados a pensar. Ou seja: mudamos, ganhamos musculatura política através dos movimentos sociais, da organização da sociedade civil e do estabelecimento de uma constituição progressista, mas a velha política, a política dos conchavos continua exercendo seu papel no controle dos territórios e das riquezas do Brasil através principalmente do poder legislativo.


Jullyana Lopes Luporini Barbosa de Souza é mestra pelo programa de História Econômica da FFLCH-USP. Desenvolveu pesquisa com financiamento da CAPES na área de história do brasil republicano; história das industrias; burguesia industrial paulista. Possui experiência em gestão de arquivos populares. Mestranda em Memória e Acervos na Instituição Casa de Rui Barbosa.