Como você diria que eram os primeiros docentes do curso de Geografia da Universidade de São Paulo? Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP levantou os perfis dos profissionais que formaram a antiga cátedra de Geografia, a partir de 1934, e observou características peculiares em relação a outros cursos da Universidade.
A variedade de trajetórias e produções identificadas rebate a ideia de que as pesquisas acadêmicas formavam um grupo homogêneo de filosofias. “O objetivo é desfazer essa impressão de que havia uma geografia tradicional francesa na USP. Nós saímos dessa impressão para 15 trajetórias diferentes e, muitas delas, com propostas específicas de geografia”, afirma Rogério Silva Bezerra, autor da tese.
Baseado na Escola Francesa, que pregava uma formação mais acadêmica e integrada de professores pesquisadores, o curso de Geografia da USP foi fundado em 1934 e era ministrado em conjunto com História no subsolo da Faculdade de Medicina, localizada na Avenida Doutor Arnaldo. Ele fazia parte da quinta seção daquela que era conhecida como Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL).
Porém, as grandes diferenças históricas, sociais e até epistemológicas entre as duas unidades fizeram a comunidade da Medicina tentar expulsar a FFCL do prédio em 1937. “Enquanto a Faculdade de Medicina tinha sua origem no período oligarca, pertencia ao sistema de faculdades e institutos isolados e tinha um público de elite, a FFCL era recém-fundada, pretendia realizar uma função de síntese e agrupamento dos saberes e atendia essencialmente a formação docente para o ensino público, composta hegemonicamente pelas classes médias e de menor renda”, diz a pesquisa.
A relação entre as instituições ficou insustentável e o curso foi realocado para o antigo prédio do Instituto de Educação Caetano de Campos, na Praça da República, em 1938. Após onze anos, mudou-se para o prédio da Rua Maria Antônia, onde ficou até 1968, ano da reforma universitária brasileira. Na década de 1970, a FFLCH já estava na atual Cidade Universitária do Campus Butantã.
Uma geração, muitos perfis
Os primeiros geógrafos e geógrafas da USP não eram majoritariamente da elite paulistana, como aconteceu em outros institutos. A pesquisa indicou que o posto de catedrático (proporcional ao chefe de departamento hoje) era o mais prestigiado, mas que outros cargos ficaram com pessoas de alas mais populares da sociedade. “Logo que as cátedras foram ocupadas, os grupos oligárquicos se desinteressaram pela USP”, explica Rogério. Foi nesse cenário que surgiram perfis como o Professor Emérito Aziz Nacib Ab'Saber, um migrante pobre que chegou a ser jardineiro enquanto estudava.
Apesar disso, houve um forte sentimento modernista regional no surgimento do curso de Geografia da USP. A geografia paulistana confrontava o modelo técnico e aplicado dos cariocas, representado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pela Universidade do Brasil (antiga Universidade do Distrito Federal).
Rogério enfatiza a iniciativa dos uspianos de colocar São Paulo como responsável por desvincular o Brasil de sua origem colonial monárquica e torná-lo um grande país. “Nesse período, a Escola Paulista produziu uma série de bibliografias para comemorar os 400 anos da cidade. Eles fizeram o livro A Cidade de São Paulo, onde há um mapa em que São Paulo é colocado no centro do mundo”. O pesquisador contrapõe que, de fato, o Estado é um desses polos produtores dos discursos sobre o Brasil, mas não é o único.
Por outro lado, essa imagem de uma São Paulo moderna e científica escondia o caráter oligárquico e escravista da elite paulistana, que também estava nos catedráticos da geografia uspiana. “Não dá para negar que houve uma maquiagem, uma sobreposição ou o que chamamos de apagamento da tradição aliada escravista, com a fundação da USP e dos aparelhos modernos de comunicação de São Paulo”, explica Rogério.
Muitos perfis, uma herança
Outra “herança” da República Velha que a primeira geração do curso não abandonou foi o machismo. Apesar da importante participação feminina destacada pela tese, o que se constata é um reconhecimento majoritariamente masculino. A pesquisa levantou que, em 25 anos de publicações acadêmicas da primeira geração, apenas 10% eram de mulheres. “Essa composição se contrasta com que foi mostrado nas listas de matriculados no curso de Geografia e História, em que se verifica a predominância das mulheres, assim como a conhecida dominância feminina nas posições no nível básico da educação”, diz o estudo.
Foi a partir de 1976 que a situação de gênero começou a mudar e, em 1986, houve empate no número de publicações femininas e masculinas. As autoras da primeira geração da academia de geografia da USP com mais publicações no Boletim Paulista de Geografia (BPG) foram Nice Lecocq-Müller (8 publicações entre 1949 e 1966), Elina De Oliveira Santos (3 entre 1952-1973), Léa Goldenstein (3 entre 1972-1998) e Ely Goulart Pereira de Araújo (1 publicação em 1950).
A segunda geração
Enquanto as décadas de 1930 a 1950 uniram a geração paulista em oposição ao Rio de Janeiro e Getúlio Vargas, a partir de 1960 o grupo se dividiu em dois polos: “Tivemos o núcleo conservador que permaneceu próprio da ditadura militar e o outro grupo com discussões mais ligadas aos debates agrários e eles foram ficando mais próximos à esquerda até chegar ao que viria a ser os marxistas da segunda geração”, conta Rogério.
Entre as décadas de 1960 e 1970 houve uma transição de gerações. A segunda geração paulista de geógrafos foi responsável pela invenção da geografia marxista brasileira e foi influenciada pelo contexto da Guerra Fria e a ditadura militar no Brasil.
O pesquisador também destaca as mudanças que a escola paulista sofreu. Impactada pela geografia aplicada carioca, a academia uspiana adotou o modelo de geografia sob o viés do planejamento soviético — não o norte americano, pregado pelo IBGE na época —, formando posteriormente a Geografia Crítica.
Atualmente, o curso de pós-graduação divide-se nas áreas de Geografia Física e Geografia Humana. A estrutura do Departamento de Geografia conta com cerca de 52 profissionais — entre coordenadores, secretários, funcionários e suplentes. Destes, 52% representam o gênero masculino e 48% o feminino. Em 2024, o curso teve pouco mais de 1650 matriculados e a relação média da Fuvest de 2025 foi de 3 candidatos por vaga.