Nascimento de Cruz e Sousa

Uma de suas maiores contribuições foi retratar questões sociais como o problema da escravidão e do homem de letras negro no Brasil

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Nascimento Cruz e Sousa
Segundo Simone Rufinoni, "Resumidamente, pode-se dizer que sua obra transita entre os polos do idealismo e do desencantamento". (Arte: Alice Elias)

Em 24 de novembro de 1861, nasceu João da Cruz e Sousa, um dos maiores poetas brasileiros do século 19. Introdutor do movimento simbolista no país e autor de obras como Missal, Broquéis e Evocações, o talento e a trajetória de Cruz e Sousa não garantiram sua notoriedade em vida, em razão de sua morte precoce em 1898.

Poeta negro, filho de um escravo com uma alforra, uma de suas maiores contribuições foi retratar, por meio do simbolismo, questões sociais como o problema da escravidão e do homem de letras negro no Brasil. “O conflito do negro entre a escravidão e a liberdade é formalizado de modo complexo e dilacerante, por meio de uma constelação de imagens soturnas e satânicas, com procedimentos que, por vezes, se valem dos instrumentos da opressão para melhor desconstruí-los”, afirma Simone Rossinetti Rufinoni, professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa, sobre o legado do autor cuja obra “atinge alta qualidade estética, é contundente e original”.

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Cruz e Sousa?

Simone Rossinetti Rufinoni: João da Cruz e Sousa foi um poeta negro, brasileiro e simbolista, que viveu de 1861 a 1898. Figura como o introdutor do movimento simbolista no país com a publicação de Missal e Broquéis, ambos em 1893. Filho de um escravo com uma alforra, foi adotado pelo coronel Guilherme Xavier de Sousa e sua esposa, os quais lhe proporcionaram uma educação esmerada. De origem catarinense, trabalha em jornais e chega a ser funcionário de uma trupe de teatro, com a qual conhece o país. Fixado no Rio de Janeiro, apesar de seu talento e trajetória, não conseguirá, em vida, o efetivo reconhecimento de sua obra, vindo a falecer precocemente, de tuberculose, em 1898.

Resumidamente, pode-se dizer que sua obra transita entre os polos do idealismo e do desencantamento. Estas duas linhas de força compreendem, de um lado, a crença da arte e do criador eleito, temas caros ao Simbolismo; de outro, a percepção pessimista do mundo, a partir sobretudo da emergência da realidade escravocrata. Às duas inflexões corresponde o lusco-fusco de imagens brancas e negras – positivas e negativas, luminosas e lutuosas – as quais, formalizadas pela alta voltagem da sua poética, apontam para visões de mundo inconciliáveis.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a literatura de Cruz e Sousa?

Simone Rossinetti Rufinoni: A literatura de Cruz e Sousa é marcada, em primeiro lugar, pelas características do movimento simbolista europeu. Segundo esta tendência, a poesia deve acercar-se dos objetos do mundo por meio da sugestão, afastando-se de qualquer intenção objetivista. O tecido poético da estética simbolista é composto por uma torrente de imagens, opondo-se à mera representação: a poesia evoca, alude por meio de articulações incomuns, insólitas e surpreendentes, levando a um efeito de dissonância. Assim, a imagem simbolista assemelha-se à visão por meio de um caleidoscópio, uma vez que fragmenta, deforma e oferece estilhaços do real, liricamente confeccionados. Nesse caminho, cabe citar uma das influências importantes da estética simbolista: a chamada “teoria das correspondências”, desentranhada do poema de Charles Baudelaire, Correspondances: “les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (“os perfumes, as cores e os sons se correspondem”). Segundo tal teoria, o mundo deve ser apreendido pela confluência de sentidos e sentimentos, perfazendo um amálgama sinestésico de percepções irredutíveis à ciência ou à razão. As diversas expressões da arte simbolista situam-se na contramão da visão de mundo do Realismo (e mais ainda do Naturalismo). Pode-se considerar que as experiências simbolistas marcam o limiar da lírica moderna.

No caso da obra de Cruz e Sousa, o modelo externo – o Simbolismo europeu – sofrerá a inflexão do ponto de vista do artista negro, por meio do qual assomam à sua obra aspectos da historicidade local.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Simone Rossinetti Rufinoni: Cruz e Sousa foi, seguramente, um dos maiores poetas brasileiros do século 19. Sua obra, composta de poesia e poemas em prosa, atinge alta qualidade estética, é contundente e original. Uma das suas maiores contribuições será capturar, a partir de sua obra madura e por meio das lentes simbolistas, o problema da escravidão e do homem de letras negro no Brasil. Assim, os grandes temas do movimento são tensionados e transfigurados pela emergência das questões sociais brasileiras. Comparecem, então, em meio à profusão de imagens, as peculiaridades do sistema escravista e o impacto destas para o escritor negro, cuja ciência do período considerava “raça inferior”. Contudo, no que diz respeito à repercussão, sua obra não é tão lida quanto deveria, a meu ver, possivelmente, por duas circunstâncias diversas: por um lado, o Simbolismo soa retórico e difícil aos olhos de hoje; por outro, o que se espera de um poeta negro, filho de escravos, não parece condizer com a literatura de Cruz e Sousa. Não há, em sua obra, consciência clara ou positiva de algum tipo de negritude, ou simples aceitação de sua condição. São outros os caminhos por meio dos quais Cruz e Sousa forja a resposta contraideológica. O movimento intenso e angustiante, que se imprime sobretudo em suas páginas de prosa, reverbera dolorosamente as vozes de sua época, ao mesmo tempo em que elabora sofisticadas estratégias estéticas de enfrentamento. Desse modo, o conflito do negro entre a escravidão e a liberdade é formalizado de modo muito mais complexo e dilacerante, por meio de uma constelação de imagens soturnas e satânicas, com procedimentos que, por vezes, se valem dos instrumentos da opressão para melhor desconstruí-los. Com efeito, o poeta negro, considerado uma excrescência pela ciência racista da época, elabora as aporias da práxis, por meio de uma série de símbolos novos, aptos a sugerir o impasse social. De modo emblemático, em sua obra póstuma Evocações, Cruz e Sousa cunha o mais potente “símbolo” do grande drama do homem negro de letras no Brasil, termo que também dá título a seu mais famoso poema em prosa: Emparedado.

Simone Rossinetti Rufinoni é mestre e doutora em Literatura Brasileira pela FFLCH, e atua como crítica literária e professora da mesma instituição. É autora de Favor e Melancolia: estudo sobre A menina morta, de Cornélio Penna (São Paulo: Edusp/Nankin, 2010) e organizadora de Caminhos da lírica brasileira contemporânea: ensaios (São Paulo: Nankin, 2013). Entre suas pesquisas atuais, destacam-se os seguintes assuntos: estudo das relações entre literatura e sociedade no romance brasileiro a partir de 1930, estudo da obra de Mário de Andrade, estudo da obra de Cruz e Sousa.