Considerado o livro da vida de Fernando Pessoa, é composto por mais de quinhentos fragmentos
Considerado o livro da vida de Fernando Pessoa, o Livro do Desassossego foi escrito ao longo de mais de vinte anos e publicado 47 anos depois da morte do escritor. Por conta disso, é uma obra conjunta de Pessoa e seus organizadores: “tomado como objeto, como resultado, o Livro do Desassossego não é fruto autoral de Pessoa; ele decorre de um esforço crítico e filológico monumental, o qual resulta em inevitáveis variações de edição para edição”, explica Caio Gagliardi, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Composta por mais de quinhentos fragmentos, a obra foi escrita por Bernardo Soares, personalidade fictícia que teria conhecido Fernando Pessoa em um boteco e entregou-lhe o Livro do Desassossego. Diferentemente dos outros heterônimos de Pessoa, de personalidades e biografias distintas das do escritor, Bernardo Soares é considerado um semi-heterônimo, uma vez que é muito parecido com o escritor português.
Dentre outros temas de teor reflexivo, a obra trata sobre “o absurdo da existência, a inadaptação à realidade e a relativização das verdades, incluindo a ideia de Deus e do próprio sujeito, que se sente disperso por força de tanto pensar”, nas palavras do professor Gagliardi. Confira a entrevista completa:
Serviço de Comunicação Social: Qual a importância do Livro do Desassossego para a Literatura? Em linhas gerais, quais as temáticas abordadas pela obra?
Caio Gagliardi: Escrito, com intermitências, ao longo de mais de duas décadas, o Livro do Desassossego é o livro da vida de Fernando Pessoa. Quando surgiu, em 1982, 47 anos depois da morte do escritor (coincidentemente, aos 47 anos), sua publicação foi responsável por um verdadeiro boom: nos anos oitenta, praticamente não houve um grande crítico português que não tenha escrito a seu respeito. O fantasma de Pessoa vinha subverter, com o seu interminável e irredutível antilivro, perfeitamente encarnado na pós-modernidade, três conceitos fundamentais. A ideia de obra era então desfigurada por sua permanente instabilidade; a ideia de livro tornava-se inadequada devido à sua virtualidade; e a de narrativa deparava-se com uma radical estaticidade. Engendrando uma autobiografia sem fatos, Pessoa realizava, com uma acuidade psicológica, filosófica e estética inauditas, a prosa mais abissal de nossa língua.
Em seus mais de quinhentos fragmentos, que podem ser sintetizados como “o desalinho triste” de suas “emoções confusas”, segundo as próprias palavras de Bernardo Soares, sobressai o absurdo da existência, a inadaptação à realidade e a relativização das verdades, incluindo a ideia de Deus e do próprio sujeito, que se sente disperso por força de tanto pensar. A desintegração é um efeito de sua autoconsciência aniquiladora, do hábito de se olhar por detrás de si mesmo. O tom melancólico com que o narrador expõe a miséria de sua condição é de um desalento iniludível. São inúmeras as passagens que tratam da impossibilidade de descansar a alma e o intelecto, de regressar a um lugar e a um tempo em que seja possível sentir-se uno e abrigado de qualquer inquietação. Uma das mais reveladoras é a seguinte: “Não me lembro da minha mãe. Ela morreu tinha eu um ano. Tudo o que há de disperso e duro na minha sensibilidade vem da ausência desse calor e da saudade inútil dos beijos de que me não lembro. Sou postiço. Acordei sempre contra seios outros, acalentado por desvio.”
Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Fernando Pessoa no Livro do Desassossego?
Caio Gagliardi: Tomado como objeto, como resultado, o Livro do Desassossego não é fruto autoral de Pessoa; ele decorre de um esforço crítico e filológico monumental, o qual resulta em inevitáveis variações de edição para edição. Essa é, portanto, obra conjunta de Pessoa e seus organizadores. Trata-se de fragmentos desconexos, de fundo descritivo e com altíssima voltagem introspectiva. Eu faço coro ao muito que já se disse sobre a inimitável elegância, o alto grau de inventividade verbal e a força sintética dessa escrita.
Numa cidade irregular e pulsante habita um sujeito melancólico, ora impulsionado, ora paralisado pela inquietação da própria existência. Bernardo Soares, narrador-personagem do Livro, é um espírito em solitude, uma consciência turvada de tédio, que se entrega ao hábito de viajar nas próprias sensações e ao de oferecer contornos oníricos à realidade. Soares enxerga as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fita as reais. Assim, nesse seu diário íntimo, Lisboa se transforma num espaço anímico, numa subjetividade visível, concreta, porque situada fora, e não dentro de si. Esse é um dos traços mais marcantes da escrita intimista soariana: como resultado de uma metamorfose de seu olhar transfigurador, falar de Lisboa torna-se falar de si.
Serviço de Comunicação Social: Qual é a melhor maneira de se ler o Livro do Desassossego? Quais edições você recomenda?
Caio Gagliardi: Impactado pela leitura do conto “A imitação da rosa”, de Clarice Lispector, Caetano Veloso confessou, numa entrevista, ter ficado com “medo de enlouquecer”. O Livro do Desassossego se enquadra nessa mesma categoria de obras. Ele deveria vir com uma tarja preta advertindo: “Cuidado! Recomenda-se a leitura em doses homeopáticas.” Sem exagero, a sua leitura é um acontecimento estético e humano perturbador, capaz de arruinar muitos leitores.
A ideia de livro “interminável” ou “inacabável” é sempre usada para definir a sua natureza. Se Pessoa tivesse vivido mais trinta anos, o Livro permaneceria, provavelmente, em estágio de elaboração, numa progressão sem fim. Como seu leitor, eu penso que posso dizer a respeito de minha experiência de leitura: comecei-o a ler em meados dos anos noventa, e continuo-o lendo.
São muitas as edições que se sucederam nessas suas quatro décadas de existência. Atualmente, recomendo três delas: a de Richard Zenith, editada e reeditada (com correções) pela Assírio & Alvim, em Portugal, e pela Companhia das Letras, no Brasil, responsável pelo alcance mundial do Livro; a de Jerónimo Pizarro, autor da edição crítica, saída pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em Portugal, e depois reeditada, com redefinições de autoria e correções de transcrição, como livro de bolso pela Tinta da China; e a de Teresa Rita Lopes, que saiu pela Global, no Brasil, a qual contempla a existência de três autorias, e, portanto, de três Livros (de Vicente Guedes, do Barão de Teive e de Bernardo Soares). Em todos os casos, estamos falando de três dos mais importantes editores da obra de Pessoa, os quais se debruçaram obstinadamente sobre os manuscritos do autor, para que essas obras pudessem existir. O privilégio é todo nosso.
Serviço de Comunicação Social: Quem é Bernardo Soares, e por que é considerado o “semi-heterônimo” de Fernando Pessoa?
Caio Gagliardi: Essa expressão se justifica por Bernardo Soares ser muito parecido com Pessoa para poder ser referido como um heterônimo. Trata-se de dois tímidos que se aproximaram pelo gosto literário e pelas afinidades de personalidade. Assim como Pessoa, Soares morava sozinho (num 4º andar da rua dos Douradores, na Baixa lisbonense) e, também como ele, trabalhava num escritório comercial. Diferentemente do que faz com Reis, Caeiro e Campos, cujas personalidades e biografias são distintas de si, Pessoa não veste propriamente uma máscara quando escreve o Livro do Desassossego. Repare-se na similaridade entre os seus nomes. Se a troca de duas letras leva de um para outro, B(F)ernar(n)do, já Soares ressoa Pessoa.
Perguntar quem é Bernardo Soares significa perguntar quem é esse sujeito que sonha acordado e se sente como eterno estrangeiro em sua pátria, em sua cidade, em si mesmo. Soares foi um escriturário, nas palavras de Pessoa, um "ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa”. Teria conhecido Pessoa num boteco, ou uma “casa de pasto”, como dizem os portugueses. Ali, entregou-lhe o Livro do Desassossego, do qual Pessoa seria, portanto, o editor.
Ao escrever o seu caderno de notas, Bernardo Soares é, de acordo com Pessoa, o “mesmo Pessoa”, apenas um pouco sonolento, menos afetivo, e, ainda segundo o autor, menos dotado de capacidade de raciocínio. Soares seria um Pessoa um pouco anestesiado, portanto. Mas essa definição é frágil – ironicamente frágil –, uma vez que o Livro, se não é uma exposição racional no sentido de ser sistemática e cerebral, é, sim, um imenso conjunto de devaneios de teor reflexivo. Ela opera mais como forma de despistar o leitor imediatista.
Bernardo Soares é desses sujeitos trágicos que passam sem serem percebidos, que decorrem a vida anonimamente. O que Álvaro de Campos afirma na abertura de “Tabacaria” (“Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo.”) poderia, subtraindo-se o tom dramático, que é próprio de Campos, ser tomado como o cartão de visitas de Bernardo Soares: a sua invisibilidade é, paradoxalmente, o ingrediente-chave de sua grandeza.
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Caio Márcio Poletti Lui Gagliardi é mestre em Teoria Literária pela Unicamp, doutor em Teoria e História Literária pela mesma instituição, e realizou três pesquisas de Pós-Doutorado: no Dipartimento di Studi Europei, Americani e Interculturali da Università degli Studi di Roma La Sapienza na UniRoma e no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP.
É também professor da USP na área de Literatura Portuguesa, e coordenador do grupo de pesquisa Estudos Pessoanos e membro do projeto Estranhar Pessoa, da Universidade Nova de Lisboa. Pesquisa poetas e ficcionistas da Literatura Portuguesa do século 20.