O tema foi abordado no debate "As línguas na produção de conhecimento científico e na educação superior”, realizado no dia 16 de março, no prédio de Letras da FFLCH
Cada vez mais as universidades têm se preocupado com a internacionalização e em estabelecer cooperação com as instituições de ensino superior de outros países. Dentro deste contexto, a língua inglesa costuma ser a mais usada entre professores e, sobretudo, na publicação de artigos em revistas científicas internacionais. Pensando nisso, o Programa de Pós-Graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP tem realizado iniciativas para debater o assunto.
Neste ano, a primeira iniciativa foi a organização de um debate ao redor do tema "As línguas na produção de conhecimento científico e na educação superior”, realizado no dia 16 de março, no prédio de Letras da Faculdade.
O evento teve a mediação da docente do Departamento de Letras Modernas da FFLCH Maite Celada; com participação dos professores: Rainer Enrique Hamel, da Universidad Autónoma Metropolitana (UAM), do México; Vladimir Safatle, do Departamento de Filosofia e presidente da Comissão de Cooperação Internacional (CCInt) da FFLCH; e de André Frazão Helene, do Instituto de Biociências (IB) da USP.
“Mal inglês”
Na ocasião, Safatle disse que uma das consequências do monopólio do inglês é o fato de que “os pesquisadores acabam escrevendo em uma terceira língua, que não é nem português e nem inglês, mas sim um “mal inglês”, o que acaba tendo um impacto sobre a própria qualidade dos textos” e comprometendo a capacidade de escrita e a potencialidade da própria produção de conhecimento.
O professor lembrou também que, anualmente, a USP e a Faculdade recebem muitos estudantes estrangeiros que chegam à universidade para fazer intercâmbio e “que veem falando uma proliferação de línguas”. O docente acredita que isto é importante para o ambiente universitário e acadêmico, porque o torna “um espaço de pluralidade de experiências linguísticas e não um espaço de limitação instrumental de uma linguagem”. Neste sentido, o presidente da CCInt destacou que o foco atual da Comissão é ampliar os convênios com as instituições latino-americanas, em especial as da América do Sul.
“Aqui começa nossa história”
No debate, o professor Hamel, da UAM, proferiu a palestra “Da hegemonia ao monopólio do inglês no campo das ciências e da educação superior – alternativas para a América Latina". Segundo o docente, como a fronteira entre o nacional e o internacional não funciona mais, o inglês acaba controlando não só as áreas estratégicas da comunicação internacional, mas também penetrando em áreas centrais da comunicação nacional. Para ele, o monitoramento e controle da estruturação comunicativa dos conteúdos acaba sustentando a imposição de uma nova ordem imperial e os modelos culturais do poder mundial dominante.
Assim, uma estratégia imperial no campo das ciências e da educação Superior opera a travês de sistemas de seleção, exclusão e hierarquização. Aborda, então, aspectos da ciência da Bibliometria e mostra como esta disciplina funciona como um instrumento de controle sobre a base de postulados absolutamente referenciais, circulares e científicamente duvidosos ou, inclusive, falsos.
No campo das ciências, afirma o pesquisador, hoje estamos numa passagem provalvemente irreversível de um modelo plurilíngue a um monolinguismo do inglês. Fala-se da fatalidade do inglês e aqui poderia terminar a história. No entanto, afirma, “aqui começa nossa história”.
O professor da universidade mexicana disse que, para o caso latino-americano, é preciso pensar em modelos plurilíngues. E, como proposta, citou dois objetivos globais: reforçar o espanhol e o português como línguas internacionais das ciências e da educação superior, sem excluir outras (ao contrário, sempre potencializando o funcionamento destas); e apropriar-se do inglês e de outras línguas estrangeiras dentro de uma dinâmica plurilíngue. Além disso, Hamel chamou atenção para o fato de que, ao renunciar às línguas próprias, há uma redução de criatividade, o que implica um risco para a própria produção e, além disso, o inglês como “única língua” reforça assimetrias e traz um risco de tornar o mundo uma comunidade anglo-monolíngue.
“Não se trata apenas de ‘língua’”, mas de um discurso científico sujeito a modelos culturais dominantes. Nesse sentido, pode-se dizer que o inglês não implica uma “abertura”, na verdade, impõe assimetrias”, destaca Hamel. Depois, o professor citou alguns pensadores, como, por exemplo, o filósofo e crítico literário francês, Michel Foucault (1926-1984), para comentar que, se ele estivesse nos tempos atuais e fosse “forçado” a escrever em inglês – esquecendo sua língua materna – talvez os resultados de sua reflexão não fossem os mesmos. Porque “pode-se fazer a apropriação das línguas estrangeiras, mas não numa posição de subordinação”, frisou.
“Uma área construída em inglês”
Na vez do professor Helene, ele destacou que as Ciências Biológicas já é uma área totalmente construída em inglês e comentou que, entre os anos 1990 a 2004, o incentivo à internacionalização nas universidades do Brasil fez aumentar o número de revistas indexadas, em comparação aos anos 1980.
O docente citou seu caso como pesquisador, destacando que seu artigo mais citado é exatamente o único que ele escreveu em português – algo que na área normalmente não acontece. Segundo ele, isso o levou a pensar que deve haver uma demanda não atendida, “um filão que demandaria que se escreva em português para a graduação e para a pós-graduação, isto é, para os colaterais da área”. E, para finalizar, o pesquisador observou que a preocupação da própria área de Biológicas em concentrar a produção de artigos em revistas indexadas em inglês pode causar um distanciamento no relacionamento das instituições de ensino superior com a sociedade – algo que Safatle e Hamel também apontaram em suas exposições.
E, a mediadora da palestra, professora Maite, afirmou que, devido à importância do assunto para o conhecimento científico, a USP e outras universidades brasileiras, por exemplo, poderiam atuar no traçado de uma política permanente de sensibilização da comunidade acadêmica em prol do reconhecimento das línguas, além de liderar uma política na região da América do Sul – inclusive, nas diversas interlocuções com representantes de instituições externas como o Ministério da Educação, Secretaria de Educação do Estado, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre outros.
A íntegra da palestra pode ser assistida pelo canal da FFLCH no YouTube, clique aqui para conferir.
O debate continua
Dando continuidade ao debate, o próximo número do Cuadernos de Recienvenido, uma das publicações do Programa, divulgará os textos dos professores participantes da palestra, com previsão para o segundo semestre do ano.
Além disso, pesquisadores do Programa vão participar de um evento em Brasília, organizado pela Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), denominado “A internacionalização das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas: dimensões conceituais”, nos dias 22 e 23 de junho, no auditório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no qual haverá uma mesa para discutir a questão das línguas e de seu lugar no campo da produção de conhecimento científico e da educação superior.