Nietzsche: o filósofo que contestou a superioridade de Deus
Sendo um dos mais notáveis filósofos da contemporaneidade, Friedrich Wilhelm Nietzsche, nasceu em 15 de outubro de 1844 em Röcken na Prússia (atual Alemanha). Norteado pelos pensadores Rousseau, Spinoza e Schopenhauer e fundamentado em correntes filosóficas antigas, Nietzsche foi professor na universidade de Basiléia, aposentando-se cedo e passando o resto de sua vida dedicando-se a experiências filosóficas.
O “eterno devir” ou “eterno retorno” foi um pensamento apresentado por ele nesse mesmo período. Esse conceito pode ser simplificado em um modo de vida. Nietzsche, em sua obra A Gaia Ciência, propõe que todas as nossas vidas se repetirão da mesma forma e ordem eternamente. Dessa maneira, Nietzsche afirma que a ideia que devemos abraçar do “eterno devir” e ter amor ao destino. O seu intuito, com essa declaração, era redirecionar o amor que a humanidade tinha por Deus, e pela “vida eterna”, à vida terrena.
Outra declaração célebre de Nietzsche é a proclamação da morte de Deus. A frase “Deus está morto” é vista no livro Assim falou Zaratustra, sua principal obra. A colocação, muitas vezes mal interpretada, na realidade fala sobre a superioridade dada à ciência em detrimento da superioridade divina. Stelio de Carvalho Neto, doutorando em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, dá a sua explicação sobre a frase: “No séc. 19, Nietzsche testemunhava a prevalência da verdade da ciência sobre a verdade divina. A própria exigência de verdade do cristianismo, que faz do Diabo o Pai da Mentira, acaba por aniquilar o velho Deus. Isso é constatável de maneira muito prosaica: alguém com uma infecção bacteriana vai à farmácia comprar antibióticos ou vai chamar um padre? Pode-se argumentar que existem aqueles que tomam o antibiótico e chamam o padre. Na perspectiva de Nietzsche, isso acontece porque um deus das dimensões de Javé não cai assim, de repente. Ele cai lentamente e, enquanto cai, ainda faz sombra”.
Confira a entrevista completa:
Serviço de Comunicação Social: Você poderia falar um pouco sobre quem foi Friedrich Nietzsche e qual a sua corrente de pensamento filosófica?
Stelio de Carvalho Neto: Essa é uma pergunta bastante ampla. Talvez seja até mesmo pertinente perguntarmos "o que foi Friedrich Nietzsche?". Formado em Filologia, professor na universidade da Basiléia, Nietzsche se aposentou muito cedo e passou a viver de uma pensão que recebia desta universidade. Foi a partir de então que ele iniciou o que preferimos chamar de seu "experimento" filosófico. Ele mesmo se apresenta muitas vezes como "psicólogo", num tempo em que a psicologia não estava estabelecida como disciplina científica. Albert Camus, em seu livro O Homem Revoltado, diz que Nietzsche deve ser lido como um clínico, e não como um profeta. Se assumirmos essa chave de leitura, podemos encontrar nos escritos de Nietzsche a proposta de um modo de vida. Assim, ele parece se alinhar a correntes antigas, como o estoicismo, o ceticismo, o epicurismo, como também aos moralistas franceses como Montaigne, La Rochefoucauld, Pascal. Com os antigos, Nietzsche pretendeu recuperar a dignidade da filosofia como modo de vida. Com os moralistas, ele aprendeu a filosofar perspectivisticamente. Ou seja, ele não estava preocupado em estabelecer verdades fundamentais, mas no efeito que cada "verdade" tem nas vidas humanas. A verdade que Nietzsche propõe é a verdade do eterno retorno do mesmo, que deve ter como efeito o "amor fati", que é "amor ao destino". A "verdade" do eterno retorno é que nossas vidas se repetirão eternamente na mesma sequência e ordem que estão acontecendo agora, eternamente. A melhor enunciação dessa verdade está no aforismo "O maior dos pesos", de A Gaia Ciência. Se essa ideia causa desespero e tristeza, não houve "amor fati". Mas se ela traz júbilo, o amor ao destino aconteceu. Logo se vê qual é o projeto de Nietzsche: substituir o amor a Deus, que desvaloriza o mundo em função de uma vida eterna no Reino dos Céus, pelo amor ao destino, que é a consagração da vida mundana.
Serviço de Comunicação Social: Comente brevemente sobre a frase "Deus está morto"
Stelio de Carvalho Neto: O anúncio da morte de Deus aparece em Assim falou Zaratustra, no encontro com O Aposentado, que é o último papa, e O Mais Feio dos Homens, que é o assassino de Deus. Não aparece dessa forma, nessa sentença categórica, "Deus está morto". No séc. 19, Nietzsche testemunhava a prevalência da verdade da ciência sobre a verdade divina. A própria exigência de verdade do cristianismo, que faz do Diabo o Pai da Mentira, acaba por aniquilar o velho Deus. Isso é constatável de maneira muito prosaica: alguém com uma infecção bacteriana vai à farmácia comprar antibióticos ou vai chamar um padre? Pode-se argumentar que existem aqueles que tomam o antibiótico e chamam o padre. Na perspectiva de Nietzsche, isso acontece porque um deus das dimensões de Javé não cai assim, de repente. Ele cai lentamente e, enquanto cai, ainda faz sombra.
Serviço de Comunicação Social: Quais os pensadores que Nietzsche tomava como inspiração?
Stelio de Carvalho Neto: Em algumas ocasiões, Nietzsche listou os filósofos com quem se via em relação. Existe uma passagem célebre da coleção Opiniões e Sentenças Diversas, no segundo volume de Humano, Demasiado, Humano, em que ele diz: Quatro foram os pares [de mortos] que não se furtaram a mim, o sacrificante: Epicuro e Montaigne, Goethe e Spinoza, Platão e Rousseau, Pascal e Schopenhauer. Com esses devo discutir quando tiver longamente caminhado a sós, a partir deles quero ter razão ou não, a eles desejarei escutar, quando derem ou negarem razão uns aos outros. O que quer que eu diga, decida, cogite, para mim e para os outros: nesses oito fixarei o olhar, e verei seus olhos em mim fixados." É interessante notar como, para Nietzsche, isso que chamamos inspiração é uma troca de olhares. Ele quer dignificar com o olhar aqueles que admira, ainda que tenha vivido em conflito com eles. Em A Gaia Ciência, no aforismo em que apresenta o "amor fati", ele diz mesmo que não quer acusar ninguém, nem mesmo os acusadores. Lá ele diz: "que minha única negação seja desviar o olhar".
Serviço de Comunicação Social: Quais foram as principais contribuições de Nietzsche para a concepção filosófica atual?
Stelio de Carvalho Neto: Parece impossível tratar de filosofia no nosso tempo sem se referir a ele, que talvez seja o inaugurador da contemporaneidade. E não me parece exagerado dizer que ele inicia o movimento da virada linguística na história da filosofia. No Zaratustra ele diz que "a fala é uma bobagem bela, com ela podemos dançar sobre todas as coisas". Essa prevalência da linguagem está na psicanálise, na fenomenologia heideggeriana, nos jogos de Wittgenstein. A ontologia da vontade de poder parece animar a psicodinâmica freudiana e suas derivações, a esquizoanálise de Deleuze e Guattari, a biopolítica de Foucault. Esse último serviu-se fartamente do método genealógico elaborado por Nietzsche em A Genealogia da Moral, que deve ser livro como um livro de história, um livro sobre o mundo. Nele, Nietzsche parte em busca da origem das valorações morais, orientado pelos documentos da história. Isso já é um prenúncio da historiografia das moralidades. Outros leitores de Nietzsche poderiam dar maior relevância a outros aspectos de seu experimento. Por ora, eu fico com esses três: a psicofisiologia da linguagem e da vontade de poder, e o método genealógico.
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Stelio de Carvalho Neto é doutorando em Filosofia pela FFLCH-USP. Atuou na área de Educação lecionando disciplinas optativas no Projeto Escolha do Colégio Marista Arquidiocesano de São Paulo. Foi membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, participando das Formações Clínicas promovidas pela Escola de Psicanálise do FCL-SP e atuando como psicanalista em consultório particular.