Publicado ao longo do ano de 1857 em folhetim, "O guarani" constituiu importante marco disruptivo no estilo e contexto para a literatura nacional
Com a publicação de O guarani em 1857, José de Alencar abriu um campo inovador para a literatura brasileira como um todo. A obra reúne diversos elementos para compor um romance que mistura gêneros e formas discursivas distintas, algo até então inédito na cena literária nacional. Isso confere à obra um importante marco de disrupção que permitiu espaço para posteriores escritores consolidarem-se estilisticamente, como Machado de Assis.
Nas suas páginas, “entram o romance de aventuras, o romance sentimental, a historiografia, os relatos de viagem dos cronistas coloniais, as canções de gesta e as narrativas corteses medievais e também o folclore nacional.”, nas palavras do pesquisador e professor doutor Marcos Roberto Flamínio Peres, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Em entrevista concedida ao Serviço de Comunicação Social, Flamínio explica ainda como o contexto do período era de particular mudança das perspectivas literárias no mundo, coisa que não fora diferente no Brasil. Mesmo com seus índices de analfabetismo elevados, o país criava espaço nos jornais para a entrada dos romances de folhetim, e autores como José de Alencar puderam se aproveitar disso para a publicação de suas obras.
Foi o caso com O guarani, espaçado em capítulos nas edições do “Diário do Rio de Janeiro”, em que foi preciso o desenvolvimento de características narrativas e de composição para manter o público engajado na sua leitura. Além disso, foi parte de uma pretensão de constituir “uma nação a partir da inclusão e consequente exclusão de determinados episódios, pessoas, lugares e épocas”.
Confira na íntegra a entrevista concedida pelo professor Marcos Flamínio Peres:
Serviço de Comunicação Social: De forma resumida e simples, qual enredo da obra O guarani, de José de Alencar?
Marcos Roberto Flamínio Peres: Saturado de simbologias bíblicas e indígenas, O guarani (1857) parte da história de um orgulhoso fidalgo português, Dom Antônio de Mariz, que decide enfurnar-se na mata fechada nas imediações do Rio após desiludir-se com o fato de as coroas de Portugal e Espanha terem se unido (o que vigorou de 1580 a 1640). Ergue, então, às margens do rio Paquequer, um casarão em muito assemelhado a uma fortificação medieval, epicentro espacial em todo qual uma sucessão de peripécias as mais variadas irá ocorrer.
Sua filha, Cecília, é o vértice em torno do qual orbita a narrativa, atraindo continuamente a atenção de um trio de pretendentes: Peri, o índio guarani que deixou sua tribo para velar pela menina como se ela fosse a encarnação da Virgem Maria; Álvaro, protótipo de cavaleiro medieval, e Loredano, frade carmelita italiano que fará o papel do vilão. Como pano de fundo, a ameaça constante da invasão dos tapuias, que pretendiam vingar uma índia morta pelo filho do nobre português.
Ao final, quando a invasão está prestes a consumar-se e toda a família está votada a morrer, dom Antônio faz explodir o depósito de pólvora que jaz sob a casa. Mas não sem antes batizar Peri, de modo que este, na condição de cristão, possa partir com Ceci e salvá-la do final trágico.
Enquanto conduz a menina adormecida na canoa para longe dali, Peri ouve ao longe o estrondo do casarão que voa pelos ares. Mas salvam-se por pouco tempo, pois logo as águas do rio começam a subir perigosamente, levando-os a abrigarem-se, como último recurso, no alto de uma palmeira. É com essa cena emblemática que termina O guarani “E sumiu-se no horizonte...”.
Serviço de Comunicação Social: Qual foi a repercussão e importância histórica do romance desde a sua publicação até os dias de hoje? Na sua opinião, por que devemos ler O guarani hoje?
Marcos Roberto Flamínio Peres: A primeira razão, bastante pragmática, é que sempre pode cair no vestibular… A segunda razão para se ler O guarani hoje é de que se trata de um grande romance, responsável por um salto qualitativo excepcional na prosa de ficção brasileira da época.
Por mais que permaneça há tempos confortavelmente instalado no panteão da literatura brasileira, como parte inabalável do cânone, O guarani mostrou-se bastante inovador ao lançar mão em sua estrutura de inúmeras formas discursivas distintas, enriquecendo em muito a literatura brasileira de então e abrindo novos caminhos para as gerações seguintes. Na sua composição proteiforme, entram o romance de aventuras, o romance sentimental, a historiografia, os relatos de viagem dos cronistas coloniais, as canções de gesta e as narrativas corteses medievais e também o folclore nacional.
O século 19, na Europa, ampliou de forma dramática o acesso ao letramento, incorporando ao mercado consumidor de livros uma massa de leitores com domínio relativamente precário da linguagem escrita. Isso levou à criação de inúmeros gêneros discursivos que se adaptassem a esse novo público, de que o romance de folhetim - aquele publicado de modo serializado nas páginas dos jornais - era apenas a parte mais visível.
Embora a situação no Brasil fosse bem outra – estávamos em plena escravidão e com índices de analfabetismo elevadíssimos - essa exploração dos gêneros acabaria por influenciar diretamente Alencar. Ele estava muito atento a tais transformações, e O guarani talvez seja o exemplo mais fulgurante, em nossa prosa, de como essas novas condições de produção acabaram por alterar a forma literária.
Como os capítulos eram lançados espaçadamente, o autor precisava desenvolver modos de manter desperto o interesse do leitor, adotando estratégias narrativas tais como: um resumo do que se passara no capítulo anterior, personagens que se distanciavam do comum dos mortais – como Peri -, tramas amorosas com forte sugestão de perversidade – Loredano, por exemplo, tenta violar Ceci, impedido pelo índio guarani - e, sobretudo, a vitimização das personagens femininas. Como Alencar decidiu publicá-lo em livro logo após o sucesso que obteve nas páginas do “Diário do Rio de Janeiro” – jornal de que era diretor, aliás -, O guarani transformou-se num documento valioso para estudar as mudanças estruturais por que passou a prosa de ficção por aqui.
Tecnicamente, o narrador adota um ponto de vista que oscila tal como uma câmera em uma filmagem – travelling, câmera fechada... -, desenvolvendo um expediente muito moderno para aquele momento, como um cameraman.
No plano estilístico, que em geral vem recebendo pouca atenção da crítica, desenvolveu uma linguagem descritiva riquíssima, que culminaria em Iracema. Normalizou, na prosa, o uso de vocábulos de origem indígena, de que são exemplos os nomes do herói e da heroína.
Enfim, se voltarmos os olhos para a ficção brasileira anterior a O guarani, nos daremos conta do avanço palpável que esse romance representou, assim como ocorreria com parte significativa da produção posterior do próprio autor. Se não bastassem todas essas virtudes, a obra de José de Alencar também iria permitir a um escritor do porte de Machado de Assis ter um congênere com quem pudesse dialogar de igual para igual, ainda que criticamente.
Serviço de Comunicação Social: Pensando no universo acadêmico, de que maneira o romance é estudado dentro da FFLCH?
Marcos Roberto Flamínio Peres: O guarani sempre foi compreendido como uma espécie de chave interpretativa do Brasil, e é majoritariamente lido como tal até hoje. Adota a mesma estratégia de que todo romance histórico lança mão, que é a de misturar situações e personagens históricos – como a anexação de Portugal e a figura de Antônio de Mariz – a outros inteiramente inventados, de modo que possa produzir aquilo que um crítico francês chamaria de “efeito de real” (Roland Barthes). O que muda é a proporção desses elementos que entram na mistura. De resto, a própria historiografia brasileira estava em formação naquele momento através de Varnhagen, buscando também ajustar um discurso que equilibrasse esses dois polos.
Também como em todo romance histórico, gênero surgido na esteira do Romantismo, subjaz aqui a ideia da constituição de uma nação a partir da inclusão e consequente exclusão de determinados episódios, pessoas, lugares e épocas. Foi assim que se passou com duas de suas obras fundadoras – Waverley (1814), do escocês Walter Scott, e Les chouans (1829), do francês Honoré de Balzac -, cujas intrigas procuram, se não suprimir, ao menos neutralizar forças de resistência opostas a uma determinada ideia hegemônica de nação que se procura construir: os guerreiros highlanders das montanhas escocesas, no primeiro caso, e os chouans contra-revolucionários, no segundo caso. Em O guarani, exceto pelo colono português, dá-se a exclusão de todo elemento exógeno: o italiano, que surge demonizado, e o africano, que sequer surge (ainda que a trama se passe em 1604).
O cosmopolitismo de José de Alencar abriu várias frentes para a ficção nacional a partir de O guarani, como aquelas apontadas acima. Se elas ainda não foram suficientemente exploradas até hoje, isso nos dá um bom exemplo da complexidade de sua produção.
Marcos Flamínio Peres é professor-adjunto de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, com pós-doutorado no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Chicago (EUA, 2018-2019) e na Universidade de Toulouse 2 - Jean Jaurès (França, 2023). É autor dos livros As minas e a agulheta: ficção e história em As minas de prata, de José de Alencar (Editora da Universidade Federal de Minas Gerais/Scielo Books, 2015) e A fonte envenenada: transcendência e história em Gonçalves Dias (Nova Alexandria/Capes, 2003), além de vários artigos, tais como “Hagiografia de uma cortesã: idílio, modo romanesco e legenda em Lucíola, de José de Alencar” (Revista Brasileira de Literatura Comparada, 2023), “Gestos da dissimulação: o melodrama negociado em Helena, de Machado de Assis” (Diacrítica, Portugal, 2021) e “The last manifestation of Vautrin: Balzac and José de Alencar” (Nineteenth Century French Studies, USA, 2016).