Quem foi Aristóteles?

Um dos filósofos de maior influência ocidental, postulou sobre uma diversidade de temas do conhecimento e contribuiu para o desenvolvimento de áreas científicas, filosóficas e artísticas que conhecemos hoje

Por
Pedro Seno
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De acordo com Daniela Fernandes Cruz, “Não devemos entender Aristóteles como um sábio que tudo conhecia, mas como um pesquisador. Alguém que valorizava o conhecimento, e buscava conhecer a partir de estudo, de investigações, de debates e, sobretudo, de uma troca filosófica intensa com seus contemporâneos.” (Arte: Gabriela Ferrari/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Aristóteles, nascido em Estagira em 384 a.C., foi um filósofo grego cuja influência se estendeu por diversas áreas do conhecimento. Ele estudou na academia de Platão em Atenas, mas seguiu caminhos próprios após a morte de seu mestre. Tornou-se tutor de Alexandre Magno antes de retornar a Atenas para ensinar no seu recém fundado Liceu. Sua filosofia abrangeu temas como ética, metafísica, lógica e ciência.

Assim explica a pesquisadora Daniela Fernandes Cruz, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A abordagem filosófica de Aristóteles era baseada no senso comum e na investigação rigorosa dos fenômenos naturais e humanos. Ele desenvolveu teorias como a do silogismo na lógica e a da catarse na poética, que ainda são estudadas e debatidas nos dias atuais. Sua filosofia moral, em particular, teve um impacto significativo na ética ocidental, abordando questões sobre virtude, ação e cidadania em uma sociedade democrática como a de Atenas.

Segundo Daniela, o filósofo ainda possui relevância nas pesquisas acadêmicas atuais devido à riqueza de conceitos filosóficos que ele explorou. Nas universidades, são oferecidos cursos que abordam suas obras e ideias, permitindo aos estudantes mergulhar na complexidade do pensamento aristotélico.

Confira a entrevista completa realizada pela Comunicação Social com Daniela para entender mais detalhes sobre Aristóteles:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi o filósofo Aristóteles, em que período e lugar viveu?

Daniela Fernandes Cruz: Aristóteles nasceu na pequena cidade de Estagira e viveu entre 384 e 322 a.C. Filho de um médico, foi bem instruído desde cedo. Ainda adolescente mudou-se para Atenas a fim de estudar na aclamada academia de Platão, e lá permaneceu até a morte de seu mestre em 347 a.C. A partir desse período, sua vida seguiu outros rumos. Surpreendentemente, Aristóteles não fora nomeado sucessor de Platão, e a decepção o levou a deixar Atenas por outras cidades, nas quais desenvolveu algumas de suas investigações filosóficas. Aristóteles ainda retornaria a Atenas para fundar a sua própria escola, mas antes disso o rei Filipe da Macedônia o contratou como tutor de seu filho, Alexandre, aquele que futuramente seria conhecido como Alexandre Magno. Por volta do ano 335, de volta à Atenas, Aristóteles fundou finalmente o Liceu. Seus discípulos, que ficaram conhecidos como peripatéticos, eram instruídos nas mais diversas áreas do conhecimento, e durante esse período foram elaborados os tratados que hoje estudamos. Sabemos, também, que Aristóteles teve uma esposa e um filho chamado Nicômaco – tal qual o nome de seu pai -, a quem Aristóteles dedicou seu famoso tratado Ethica Nicomachea. Aristóteles deixou Atenas de forma definitiva em 323 a.C., motivado por questões políticas, e morreu um ano mais tarde.

Serviço de Comunicação Social: Por quais ideias principais o filósofo é mais marcado, do ponto de vista filosófico e, em linhas breves, que diferença fez para a história?

Daniela Fernandes Cruz: Na primeira linha da Metafísica de Aristóteles lemos que “todos os homens almejam por natureza conhecer”, e essa afirmação é um bom reflexo de sua vida e obra. A insuperável interdisciplinaridade de sua trajetória como filósofo abrange tantas áreas do conhecimento que sua relevância transborda os limites de nosso departamento, e alcança áreas muito diversas. A estratégia de Aristóteles estava em seu ponto de partida: o senso comum. Seu objetivo era compreender o funcionamento do seu mundo, e a sua realidade, a partir dos questionamentos mais básicos e atemporais. A partir disso, realizava sua própria história da filosofia analisando os argumentos que já existentes, ressaltando as dificuldades (as aporias) ali encontradas e, por fim, oferecendo seus próprios argumentos. Nesse sentido, sua fama se justifica principal e primeiramente pela abordagem única a questões discutidas entre os seus contemporâneos. Um dos mais famosos exemplos na história da filosofia é a interessante trajetória de Aristóteles enquanto um ex-discípulo de Platão que, em sua maturidade filosófica, propôs uma teoria que visava superar seu antigo mestre: Aristóteles analisou e se voltou contra à famosa teoria das Formas de Platão, propondo em vez disso a sua própria ontologia, uma doutrina do ser bastante refinada – a qual estabelece as formas como inerentes e intrínsecas aos indivíduos, e não como algo à parte deles. 

No campo das ciências práticas, Aristóteles desenvolveu detalhadamente uma filosofia moral em textos que foram elaborados com um fim bastante direcionado: no cenário da Atenas democrática da época, e lidando com seus críticos, Aristóteles defendia que o conhecimento moral seria um elemento fundamental para tomar boas decisões políticas. Partindo da afirmação que todas as atividades humanas se dariam em vista de algum bem e, nesse contexto, o sumo bem seria a felicidade (em grego, a “eudaimonia”, que se refere à realização plena de um indivíduo), Aristóteles empreendeu uma cautelosa investigação a respeito do conceito e dos tipos de virtude existentes (i.e., as intelectuais, adquiridas por ensino; as morais, adquiridas pelo hábito), e traçou um caminho para que o ser humano a alcançasse, a partir da educação e correção de seus hábitos. Nesse percurso, encontramos, por exemplo, a famosa teoria da mediedade, que serve como chave para analisar as boas escolhas. Tanto seus tratados éticos quanto o político são projetos que permanecem relevantes para se pensar questões contemporâneas, de modo que em nada nos surpreende que constem nos currículos de muitos estudantes de Direito em nossos dias. 

A influência de seu pensamento foi fundamental também para o desenvolvimento de áreas como a Linguística e Teoria Literária – em sua Poética, por exemplo, Aristóteles utilizou o conceito de “catarse” como elemento fundamental na análise literária de obras trágicas que, a despeito da ausência de uma definição precisa, faz parte do percurso de qualquer graduando em Letras. No âmbito da lógica, Aristóteles tem um papel fundamental com a apresentação de sua teoria do silogismo, cuja estrutura é ainda hoje relevante nos estudos de lógica formal. Aristóteles também desenvolveu uma robusta filosofia da ciência: ocupando um bom número de linhas Bekker, no tratado Analytica Posteriora, o filósofo analisa os diversos tipos de conhecimento, e oferece instruções àquele que deseja realizar uma investigação propriamente científica. A partir da distinção entre uma pergunta qualquer e aquela específica que fundamenta o trabalho de um cientista, Aristóteles desenvolveu um método que parte da correta formulação de questões à explicação de um fenômeno. 

Aristóteles era um filósofo popular no período em que vivera, mas não somente: seu trabalho continuou fomentando debates e protagonizando discussões ao longo dos séculos. A despeito da imprecisão que essas expressões genéricas nos trazem, quando falamos do medievo, temos exemplos em que a filosofia de Aristóteles foi utilizada para fins específicos, tais como sua utilização para explicar fenômenos particulares e esclarecer questões que muitas vezes tomaram proporções gigantescas e se tornaram problemas políticos e sociais. Dos numerosos exemplos da influência que tivera para a História, podemos destacar a controvérsia hesicasta no século XIV, caso particularmente interessante, pois a utilização de conceitos aristotélicos não se deu por uma admiração especial pelo filósofo, tampouco por qualquer compromisso dogmático com ele. Em grande medida, a controvérsia foi solucionada e esclarecida a partir da apresentação da distinção entre essência e suas energias pelo futuro arcebispo de Tessalônica, Gregório Palamas. O santo para os cristãos ortodoxos tinha com essa distinção um objetivo apenas: demonstrar que a Essência incognoscível de Deus é diferente das Energias Incriadas que agem na criação e no homem. Da Antiguidade Tardia à contemporaneidade, os textos de Aristóteles foram amplamente lidos, reproduzidos, traduzidos e comentados. Alguns comentários (e.g. os comentários de Aquino aos tratados aristotélicos) foram tão amplamente divulgados que ainda hoje podemos encontrar certas teses, frutos dessas interpretações, muitas vezes constando erroneamente como ideias propriamente aristotélicas. É interessante ressaltar que os textos de Aristóteles que chegaram até nossos dias são frutos de aulas no Liceu. A obra do filósofo pode ser dividida em, por um lado, um conjunto de textos voltados à circulação interna entre seus alunos - e, por isso, caracteristicamente mais teóricos e complexos - e, por outro lado, as obras voltadas ao público geral. Entre essas últimas, das quais nenhuma sobreviveu ao tempo, estariam os diálogos que Aristóteles teria escrito - os quais Cícero teria elogiado como sendo de tal modo belos que seriam como “um rio de ouro líquido”. A sensação que tivera Cícero ao ler Aristóteles é, no entanto, bastante distinta da nossa, uma vez que os textos que hoje estudamos em muito se parecem com complexas anotações de aula, como tratados em um constante desenvolvimento que só tardiamente seriam sistematicamente organizados. O responsável por tal sistematização foi Andrônico de Rhodes, o editor das obras de Aristóteles, a quem se atribui a organização do corpus aristotelicum: iniciado com o conjunto de tratados lógicos e seguidos, respectivamente, dos tratados de ciências naturais, metafísicos, éticos e, por fim, estéticos. 

Serviço de Comunicação Social: Como Aristóteles é inserido no contexto das pesquisas acadêmicas realizadas na FFLCH e qual sua importância nos dias atuais?

Daniela Fernandes Cruz: De modo geral, as pesquisas acadêmicas estão relacionadas a História da Filosofia Antiga. São oferecidos cursos a partir de recortes temáticos que nos permite conhecer diversas de suas obras, bem como o modo como o filósofo abordou conceitos filosóficos relevantes. Por exemplo, estudamos a teoria da virtude e da ação na Ética; a noção de “cidadania” na Política; o conceito de “natureza” ou “movimento” na Física; a noção de “substância” na Metafísica; a silogística e a teoria da ciência nos Primeiros e Segundos Analíticos, e assim por diante. Além disso, temos grupos de estudo e pesquisa para o aprofundamento do estudo a partir do texto grego de Aristóteles. Quando estudamos um filósofo da Antiguidade, lidamos com pensadores cujo trabalho sobreviveu ao tempo de maneira bastante fragmentada – no caso de Aristóteles, parte considerável de suas obras foi perdida e, entre aquelas que nos restam, temos os tratados que eram destinados apenas à circulação interna entre os alunos do Liceu, ou seja, não são obras apresentadas de uma maneira “acabada” e coesa. Ainda, essas obras estão hoje nas cópias de manuscritos gregos que datam mais de novecentos anos. Assim, estudar um filósofo da Antiguidade é, de certa maneira, desempenhar o papel de um historiador e, não raro, também de um filólogo. É uma tarefa desafiadora de reconstruir e analisar os argumentos. A relevância de sua filosofia está principalmente em compreender as questões colocadas, os argumentos analisados – e de que modo foram analisados. Não devemos entender Aristóteles como um sábio que tudo conhecia, mas como um pesquisador. Alguém que valorizava o conhecimento, e buscava conhecer a partir de estudo, de investigações, de debates e, sobretudo, de uma troca filosófica intensa com seus contemporâneos. Poderíamos dizer que a filosofia de Aristóteles é interessante não pelas suas doutrinas em si mesmas – pois essas podem apresentar inconsistências, equívocos ou já se tornaram obsoletas –, mas pelo caminho percorrido por Aristóteles até a apresentação de suas soluções. Astrônomos e biólogos certamente discordam de várias teses aristotélicas, porém a discordância não faz com que se descarte as teorias. Em vez disso, é ainda interessante conhecê-las e buscar entender como o filósofo de Estagira alcançou tais resultados há mais de dois mil anos.

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Daniela Fernandes Cruz é mestranda em Filosofia Antiga pela FFLCH-USP, beneficiada pela FAPESP. Possui graduação em Letras na mesma instituição. Faz parte do Grupo de Pesquisa "Linguagem e Argumentação em Aristóteles".