Discursista, ativista pelo movimento negro nos EUA e autor da frase “o sonho americano foi construído sobre o pesadelo dos negros”
Em 19 de maio de 1925, nasceu uma das figuras mais emblemáticas para o movimento negro estadunidense e global, Malcolm X. Nascido Malcolm Little, em Omaha, Nebraska, nos Estados Unidos, foi filho de Earl Little, pastor batista e ativista pelos direitos dos negros.
Seu pai era ligado com a Universal Negro Movement (UNIA), uma organização que buscava a autossuficiência dos negros que pretendia buscar um lugar na África para que os negros americanos pudessem se alocar. Ela atingia de modo geral os trabalhadores negros urbanos e rurais. Em 1931, o pai de Malcolm sofreu um acidente e acabou falecendo, deixando Louise Little, mãe de Malcolm, e seus sete filhos. Tendo uma vida extrema, de grande carga mental e física para manter seus filhos viúva, Louise foi internada em um hospital psiquiátrico. Com a perda da mãe, os sete irmãos foram separados em instituições de cuidado juvenil diferentes.
A morte de Earl Little, que teve suspeitas de assassinato por parte de milícias de extrema direita, foi um dos motivos de Malcolm ter tido uma infância e adolescência conturbadas. Em 1946, foi condenado a dez anos de prisão. Foi nesse período também que teve interações com alguns membros da Nação do Islã (NOI), uma organização religiosa e política que defendia a emancipação negra e considerava o cristianismo uma “religião branca”. Dessa forma, depois que saiu da cadeia, Malcolm X se filiou à NOI e, devido ao seu carisma e excelente oratória, se tornou um de seus principais representantes.
Após alguns anos, Malcolm X acabou insatisfeito com atitudes indecentes do líder da organização, Elijah Mohammad, e cortou laços com ela. Como Malcolm X já era uma figura muito visada e admirada, em 1964 fundou a Organization of Afro-American Unity (OAAU), além de sua própria mesquita, Muslim Mosque. Essa movimentação fez com que a NOI perdesse muitos adeptos.
A OAAU era uma instituição que tinha como objetivo de restaurar a identidade, a dignidade e a condição financeiras dos negros, ensinar os negros sobre sua origem e ajudá-los a se defender dos brancos. No entanto, a vida de Malcolm X, e por consequência a vida da instituição, passava por diversas ameaças. No dia 21 de fevereiro de 1965, o ativista foi assassinado no decorrer de um discurso na OAAU.
Confira a entrevista completa com a professora Mary Anne Junqueira, doutora em História Social, para o Serviço de Comunicação Social da FFLCH:
Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Poderia comentar brevemente sobre quem foi Malcolm X?
Mary Anne Junqueira: Malcolm X (1925-1965), nascido Malcolm Little, em Omaha, estado de Nebraska, Estados Unidos, foi liderança proeminente da comunidade negra, principalmente nos anos 1950 e 1960. Hoje, continua como referência para os negros e negras nos Estados Unidos. Era filho de Louise Little e Earl Little, um pastor batista que tinha ligações com a UNIA – Universal Negro Movement, fundada pelo ativista jamaicano, com atuação nos Estados Unidos, Marcus Garvey. A organização intercedia pela autossuficiência e orgulho negros, além da busca por um possível lugar para o deslocamento dos negros das Américas para a África. As propostas da UNIA alcançava basicamente os negros da classe operária e trabalhadores rurais.
Em 1931, o casal Little já tinha sete filhos. Earl Little morreu no mesmo ano, quando foi declarada morte por acidente, logo depois de ter sido atropelado por um bonde. Entretanto, não se pode descartar a possibilidade de Earl ter sido assassinado por milícias de extrema direita, a Legião Negra, certamente em razão da sua aproximação com a UNIA. Viúva, Louise Little lutou para manter a família, mas a vida a atingiu física e mentalmente. Foi considerada demente e internada numa instituição de saúde mental. Os irmãos se separaram e Malcolm foi transferido para uma instituição de reabilitação juvenil. Em uma palavra, a família Little foi desintegrada pela segregação racial e violência contra os negros
nos Estados Unidos.
Nos anos 1950 e 1960, dois líderes do movimento negro se destacaram: Martin Luther King (1929-1968) e Malcolm X. King, à frente do Civil Rights, era pastor batista do sul do país, enquanto X era homem dos guetos das grandes cidades, mais precisamente do Harlem.
Enquanto o primeiro lutava pela integração dos negros à sociedade, Malcolm X defendia o nacionalismo negro. Isto é, que os negros adquirissem autossuficiência e construíssem um mundo dos negros e para os negros. Para Malcolm X, a porta que Martin Luther King
lutava para abrir, estava irremediavelmente fechada para os negros. De uma forma ou de outra, os dois ativistas foram e são figuras chaves do movimento negro e da História dos Estados Unidos. Ainda que os dois tenham sido lideranças em âmbito nacional, não é possível esquecer o imprescindível trabalho das mulheres, sobretudo a nível local, na luta por direitos políticos dos negros no país.
Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Qual foi a importância de Malcolm X se converter ao islamismo aindaquando estava preso?
Mary Anne Junqueira: Malcolm Little foi preso em 1946 por posse ilegal de arma de fogo, roubo e arrombamento. Na prisão, ele teve contato com membros da Nação do Islã, a organização política e religiosa que desde os anos 1920 vinha ganhando adeptos em nome do nacionalismo negro. Ela defendia a unidade e ajuda entre os negros a partir de austero código de conduta. Com isso, os seguidores da organização procuravam demarcar os seus contornos contra as denominações cristãs dos Estados Unidos, consideradas como religião dos brancos.
É importante destacar que a Nação do Islã pregava a partir de um mito de origem em que asseveravam que a religião original da África, de onde vieram os escravizados, era o islamismo. Aliado a isso, para consubstanciar esse mito de origem, eles defendiam como seus ancestrais alguns dos escravizados muçulmanos dos Estados Unidos do século 19. Portanto, as concepções sobre o Islã da organização se distancia(va)m daquela da África e da Ásia. A Nação do Islã se desenvolveu entre o político e o religioso, preconizando em duas direções: a primeira em nome de uma certa volta às origens, a segunda em defesa do nacionalismo negro. Tal ideário caiu sobre Malcolm de forma decisiva, transformando-o definitivamente, tornando-o líder carismático da Nação do Islã e depois liderança política respeitada entre parte dos negros.
Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Qual a importância da Organization of Afro-American Unity (OAAU),fundada por Malcolm?
Mary Anne Junqueira: A Nação do Islã capturou a imaginação de Malcolm X, mas também lhe causou desgostos e exasperação. Ele ganhou destaque e angariava cada vez mais seguidores, o que criou problemas entre as lideranças da organização, inclusive com Elijah Mohammad, o líder religioso máximo da Nação do Islã.
Primeiro, Malcolm X admirou diligentemente Mohammad, mas ao fim descobriu atividades desonestas por parte do líder. Ele divergiu também de como Mohammad encaminhava o ativismo político da organização. Em outras palavras, Mohammad não cumpria aquilo que pregava. Tal perspectiva fez com que Malcolm X deixasse a organização e partisse para uma viagem à Meca, de onde voltou com a declaração que havia se convertido ao Islã sunita, marcando distanciamento com a Nação do Islã.
Além disso, criara a sua própria mesquita, a Muslim Mosque, o que atingia frontalmente a Nação do Islã, dada a liderança carismática que o caracterizava. Não havia dúvidas, se Malcolm X criasse tal mesquita, a Nação do Islã perderia adeptos. A criação da Organization of Afro-American Unity, no Harlem, em 1964, se deu nesse contexto.
A OAAU se apresentava com alguns diferenciais: primeiro era organização secular e estava, portanto, voltada mais para a política; segundo, eles olhavam para fora do país, para o Atlântico, procurando agregar o contingente negro africano aos negros das Américas. A organização propunha para os negros restauração (tirá-los da condição miserável e inferiorizada), reorientação (ênfase na conscientização da condição do negro), educação, segurança econômica e autodefesa. A OAAU teve vida curta. Malcolm X foi assassinado em 21 de fevereiro de 1965, por membros da Nação do Islã, no Audubon Mallroom, em Nova York, onde ele se preparava para discurso em encontro da própria OAAU.
Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Fale um pouco sobre a frase “o sonho americano foi construído sobre o pesadelo dos negros”.
Mary Anne Junqueira: A Nação do Islã, em geral, e Malcolm X em particular procuravam desconstruir a narrativa da nação norte-americana. A versão da História do país, sem conflitos e dissensões, que representa(va) uma trajetória linear, solar dos Estados Unidos, foi desenvolvida da Independência ao lugar de hegemonia mundial após a Segunda Guerra Mundial. Notável orador, Malcolm X declarou que o sonho norte-americano fora construído sobre o pesadelo dos negros. A expressão American dream, utilizada especialmente durante a segunda metade do século 20, era dirigida às famílias de classe média brancas em período de afluência do país. O que Malcolm X denunciava é que parte da riqueza dos Estados Unidos era feita sobre a marginalização, depauperação, baixos salários e cidadania de segunda classe legados aos negros.
A importância de Malcolm X para o desenvolvimento do movimento negro é inegável. Para se ter ideia, o ativista é considerado uma espécie de “pai espiritual” do movimento Black Power, nos anos 1970, que se inspirou em muitas das suas proposições. Ele continua ainda hoje a influenciar muitos negros nos Estados Unidos, cuja luta se mantem por igualdade e dignidade.
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A professora Mary Anne Junqueira, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, tem Graduação em História (1994) e Doutorado Direto em História Social (1998), ambos pela USP.