Primeira Revolução Industrial

Com transformações profundas nas condições sociais, econômicas e existenciais da humanidade, a primeira das revoluções industriais marcou a passagem de um tempo a outro da história

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Pedro Seno
Data de Publicação

Segundo Osvaldo Coggiola, “A indústria só se estabeleceu solidamente em menos de 10% da superfície dos continentes, mas colocou o mundo inteiro em estado de mobilização para seu uso”. (Arte: Pedro Seno/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

A Revolução Industrial foi um duradouro processo que se tornou marco histórico para a humanidade e pode ser definido como uma transformação radical na sociedade e na economia. Iniciada na Inglaterra aproximadamente no final do século 18, expandiu-se para outros países europeus, impulsionando o crescimento econômico e a urbanização.

A Revolução provocou mudanças profundas nas dinâmicas da sociedade ao introduzir novas formas de produção, organização do trabalho e relações econômicas. A transição da produção rural para a industrialização nas cidades impulsionou o crescimento urbano, transformando as metrópoles da época em núcleos industriais e deslocando a ênfase econômica dos setores terciários para a produção industrial. Segundo Osvaldo Coggiola, professor de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, “a paisagem rural e urbana nunca mais foi a mesma: na segunda metade do século XIX, toda a paisagem natural inglesa tinha sido alterada pela ação industrial do homem, nada restando de suas florestas originais”.

Além disso, ela redefiniu a relação entre ciência, tecnologia e produção. Conforme explica Coggiola, a separação entre esses elementos “se desfez no interior do processo de transformação industrial do capitalismo”. A mecanização, a utilização de novas fontes de energia e a transformação dos meios de produção em capital foram aspectos-chave desse processo.

Dentre os impactos negativos e positivos gerados pelo evento, por um lado, a introdução de máquinas e a mecanização da produção aumentaram a eficiência e a produtividade, multiplicando o rendimento do trabalho e impulsionando a produção global. No entanto, essa transformação também resultou em mudanças nas relações de trabalho, com a subdivisão das tarefas nas fábricas e a limitação do domínio técnico dos trabalhadores sobre seu próprio trabalho. A ascensão do capitalismo industrial substituiu o papel dominante dos comerciantes na economia, levando ao declínio do artesanato tradicional e das associações corporativas. A Revolução Industrial também desencadeou uma aceleração no desenvolvimento tecnológico e científico, exigindo progressos contínuos para sustentar o crescimento da produção.

Na outra via, a Revolução provocou mudanças estruturais significativas, modificando a relação entre sociedade e natureza e redefinindo a natureza do trabalho humano. A transição da ferramenta para a máquina e a subordinação do trabalhador ao capital marcaram uma nova fase na história do trabalho, que se tornou  mercadoria ao passo que os operários  passaram a vender suas forças trabalhistas. Essa alteração na produção social impulsionou a busca por mais-valia relativa, noção introduzida por Karl Marx.

Ainda segundo Osvaldo Coggiola, “A Revolução Industrial e sua difusão, primeiro na Europa e depois, com ritmos diferenciados, pelo restante do mundo, alterou drasticamente as condições de existência da população humana, impondo-lhe um ritmo geométrico de crescimento, superando o ritmo aritmético que tinha seguido em toda a história precedente.”

Para mais detalhes e explicações bem definidas, confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: O que foi a Primeira Revolução Industrial?

Osvaldo Luis Angel Coggiola: O conceito de Revolução Industrial só veio a ser utilizado nas décadas de 1820-1830, quando se constatou que, pela primeira vez na história da humanidade, haviam sido retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante e ilimitada, de homens, mercadorias e serviços. A Revolução Industrial inglesa, filha da divisão do trabalho e da expansão mercantil, criou, simultaneamente, os instrumentos científicos, técnicos e ideológicos que lhe permitiram sua vitória a escala nacional, continental e mundial: só mediante esse “circuito fechado” ela deitou suas raízes definitivas; foi esse ciclo completo que esteve ausente nas abortadas “revoluções industriais” precedentes em outros países ou regiões. Pela Revolução Industrial, a acumulação primitiva foi substituída pela acumulação de capital ou “reprodução ampliada”. O fenômeno já tinha sido percebido no século XVIII, quando David Hume e seu discípulo Adam Smith desafiaram as doutrinas mercantilistas; a crença, por exemplo, de que o montante da riqueza permanecia constante e que um Estado só podia aumentar a sua riqueza em detrimento de outro. Os primeiros economistas clássicos constataram que a riqueza geral pode também crescer de modo constante, até ilimitado: a nova sociedade, o capitalismo, se baseava na competição econômica por mercados que poderiam expandir-se.

O mercantilismo cedeu seu lugar ao capitalismo de predominância industrial que integrou no seu processo a terra, o comércio, a tecnologia e o trabalho, sob a forma da relação salarial. A tecnologia passou a se basear na mecanização e na utilização de novos materiais e novas fontes de energia (carvão, vapor) integradas ao sistema fabril. O capitalismo se apropriou da esfera da produção mediante a transformação geral dos meios de produção em capital. Seu deslanche teve lugar na Inglaterra, onde, sob as penúrias impostas pelo bloqueio continental francês e a enorme dívida pública, através de crises políticas entre aristocracia, burguesia agrária e burguesia industrial, e de ampliações do colégio eleitoral, a indústria inglesa se impôs, transformando o país na fábrica do mundo.

A Revolução Industrial fusionou a ciência exata e natural com a produção: a ciência tendeu a se transformar em força produtiva imediata, através da tecnologia. Ao revolucionar as relações sociedade/natureza, o capitalismo quebrou a distinção entre ciência pura, ciência aplicada e tecnologia; realizou isso a serviço do lucro capitalista, tendendo a colocar a ciência ao serviço da técnica, e a técnica ao serviço da acumulação de capital. A paisagem rural e urbana nunca mais foi a mesma: na segunda metade do século XIX, toda a paisagem natural inglesa tinha sido alterada pela ação industrial do homem, nada restando de suas florestas originais. Inglaterra abriu um caminho que, nos séculos seguintes, seria percorrido por quase todos os países e regiões do planeta. A evolução econômica da Inglaterra foi o desenvolvimento inicial de uma tendência universal. A mudança acelerada das fontes energéticas e da complexidade (eficiência) dos motores era determinada pelas necessidades econômicas (oscilação dos mercados, concorrência, aumento da mais-valia) e foi abrindo o caminho para a era dos motores acionados por combustíveis fósseis e outras fontes mais eficientes (crescentemente destrutivas do meio natural) de obtenção de energia.

Serviço de Comunicação Social: Como ela mudou as dinâmicas da sociedade, de uma forma geral?

Osvaldo Luis Angel Coggiola: Ao mesmo tempo em que o trabalho abstrato se constituía numa espécie de trabalho socialmente igualado, não se encontrava no mercado mundial nenhuma outra mercadoria capaz de regular o conjunto das diversas economias a não ser o próprio trabalho. Na era da generalização do trabalho abstrato para o conjunto da sociedade concebe-se um marco na elaboração da ideia de homem e de trabalho. O trabalho foi o denominador comum do processo que permitiu a emergência da Revolução Industrial e, simultaneamente, da economia política clássica. Ambas foram amplamente preparadas por um processo que combinou vários elementos de síntese. A separação entre ciência e tecnologia se desfez no interior do processo de transformação industrial do capitalismo. Na raiz do processo esteve a elaboração do conceito de trabalho, que foi elaborado pela ciência físico-natural em referência ao trabalho humano.

A Revolução Industrial operou uma mudança na relação sociedade/meio natural e mudou a natureza do trabalho humano. Na história do trabalho, ela marcou uma de suas três grandes rupturas: 1) As manifestações iniciais do homem na preparação e melhoramento de ferramentas seminaturais que permitiram um princípio de sobrevivência diferenciado como espécie biológica, sem que ainda surgisse uma divisão social do trabalho além daquela ditada pela diferença dos sexos; 2) A “revolução neolítica”, com a sociedade humana afincada em um terreno e que se organiza como tal na produção e nos ciclos próprios da agricultura e da criação de animais; a superação do nomadismo, possibilitado pelo domínio inicial do cultivo da terra; c) O nascimento da indústria capitalista e o deslocamento do centro da produção do campo para a cidade. Isto foi possível graças a numerosas sínteses científicas precedentes, que somente puderam se combinar sobre a base da Revolução Industrial. O crescimento urbano com a Revolução Industrial foi espantoso. Isto é o transcendental do mundo industrial. Até a Revolução Industrial, isto é, até finais do século XVIII e inícios do século XIX, a produção era rural; tudo que se produzia saia dos campos ou das minas; a cidade fazia o pequeno artesanato e a grande operação de intermediação, de comprar e vender. De repente, a Revolução Industrial pôs o foco da produção, a fábrica, dentro da cidade. A cidade deixava de ser o centro daquilo que os economistas chamam de setores terciários; passava a ser o centro da produção industrial.  No século XVI, nas sociedades situadas na bacia do Mediterrâneo, as cidades abrigavam menos de 10% da população total; na segunda metade do século XVIII, isso começou a mudar vertiginosamente. 

Inglaterra se tornou a primeira sociedade majoritariamente urbana da história. Birmingham, capital do Black Country (o país enegrecido pela fuligem do carvão) e das máquinas movidas a vapor (James Watt instalou ali sua manufatura em 1776) passou de 15 mil habitantes em 1700 para 73 mil em 1800 e 225 mil em 1850. Com a siderurgia dos altos fornos, Glasgow passou de 77 mil habitantes em 1800 para 345 mil em 1850. Igual crescimento se registrou nos centros têxteis: Manchester, com 20 mil habitantes em 1760, 250 mil em 1830, 400 mil em 1850; e o Lancashire, onde o número de operários da indústria do algodão passou de 30 mil em 1800 para 360 mil... em 1820 (mais do que uma decuplicação - 10x - em duas décadas). Para os antigos citadinos causava estranheza e repulsa a mudança: do dia para noite, em Londres, Paris, Berlim, Bruxelas, Milão, Manchester ou Liverpool, os cidadãos tiveram que passar a conviver com “estranhos” de origem desconhecida. Desconheciam os modos “urbanos”, em geral eram rudes, agrupavam-se nos arrabaldes em meio à sujeira e à doença em casebres sem higiene alguma, e pareciam não se incomodar em conviver com esgotos ao ar livre. Manifestavam dificuldades de adaptação a uma cidade erguida com pedras e não com troncos e palha como no local de onde vieram.  A sociedade rural se converteu em sociedade urbana com o aumento da dimensão, densidade e heterogeneidade que das coletividades territoriais que a compõem. A partir de certo nível de desenvolvimento, a sociedade urbana passou a produzir e emitir valores que acabaram por se impor, inclusive, nas aglomerações rurais.

A “constante revolução dos meios de produção” se transformou na norma do desenvolvimento econômico, com consequências para todos os aspectos da vida social: “Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representações e intuições, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo o que era estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida e suas ligações recíprocas” (Manifesto Comunista).  A velha forma de exploração do trabalho foi obrigada a ceder seu lugar para outra, na qual a obrigação de trabalhar para outro se baseou em uma compulsão puramente econômica: o trabalhador foi obrigado economicamente a vender a sua única posse ao proprietário dos meios de produção. Pela expropriação dos meios de produção das mãos dos produtores individuais, a própria força de trabalho se transformou em mercadoria. O operário, produto social de essa expropriação, se diferenciava do trabalhador independente pois este último podia vender os produtos de seu trabalho (ou vender o seu próprio trabalho enquanto serviço) enquanto o operário só vendia sua capacidade de trabalhar (suas aptidões e habilidades, sua força muscular e intelectual).

A Revolução Industrial não consistiu só num conjunto de inovações técnicas, novas máquinas e novos procedimentos de produção, mas como uma alteração estrutural da produção social, determinada pela substituição da ferramenta pela máquina e pela subordinação do trabalhador ao capital: “Assim que o surgimento gradual da revolta da classe trabalhado impossibilite, de uma vez por todas, o aumento da produção de mais-valia, pelo prolongamento do dia de trabalho, o capital se atira, com todas as suas forças e em plena consciência da situação, à produção de mais-valia relativa, acelerando o desenvolvimento do sistema de máquinas... O maquinário não age apenas como um concorrente superior ao trabalhador, sempre a postos para torná-lo supérfluo. É um poder inimigo para ele, e o capital proclama esse fato bem alto e de forma deliberada, além de fazer uso disso... Seria possível escrever toda uma história das invenções feitas desde 1830 com o único propósito de fornecer ao capital armas contra a revolta da classe trabalhadora" (O Capital).

A expropriação dos pequenos produtores criou a premissa social do capitalismo, a transformação industrial da produção a realizou. A mecanização da produção criou o proletariado rural e urbano, composto de homens, mulheres e crianças, submetido a um trabalho diário exaustivo, no campo ou nas fábricas. Nas fábricas, os empresários lhes impuseram duras condições, com baixos salários acompanhados de duras e longas jornadas de trabalho, configurando uma verdadeira “escravidão assalariada”, apoiada e balizada pelos bastiões do poder político e ideológico: “Paciência, trabalho, sobriedade, frugalidade e religião é o que se deve recomendar a eles; tudo o mais é pura fraude” escrevia Edmund Burke, historiador e líder do partido whig (liberal), em 1795. A despersonalização da nova classe dos assalariados era total, como constatava um cronista da época: “Há muito menos comunicação pessoal entre o mestre da fiação de algodão e seus operários do que entre o Duque de Wellington e o mais humilde trabalhador de sua propriedade rural”.

A descrição de Marx não continha qualquer exagero: “A máquina, dotada da propriedade maravilhosa de reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provoca a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém descobertas se convertem, por artes de um estranho malefício, em fontes de privações... Todos os meios de desenvolvimento da produção se transformam em meios de domínio sobre os produtores e de exploração; eles mutilam o trabalhador, tornando-o um fragmento de homem, degradam-no ao nível de um apêndice da máquina, destroem todos os resquícios de encanto do seu trabalho, que passa a ser uma labuta odiosa; eles o alienam das potencialidades intelectuais do processo de trabalho na mesma proporção em que a ciência é incorporada neste, como força independente; eles distorcem as condições nas quais ele trabalhou, sujeitando-o, durante o processo de trabalho, a um despotismo tanto mais odioso quanto mais humilhante; eles transformam seu tempo de vida em tempo de trabalho, esmagando sua esposa e filhos sob as engrenagens do capital”.

Os capitalistas procuraram estender a jornada de trabalho tanto quanto possível, forçando até meninos de nove anos a trabalhar turnos de doze horas nas terríveis condições das fundições de ferro: “Os economistas políticos clássicos se juntaram ao coro daqueles que condenaram a preguiça e a indolência por parte dos pobres. Embora tenham aplaudido as atividades de lazer dos ricos, eles denunciaram todo comportamento por parte dos menos afortunados que não implicasse o máximo de esforço de trabalho como sendo preguiça”.  Existiam, todavia, limites objetivos para aumento da jornada de trabalho. Se aumentada demais, a jornada produzia "não apenas a atrofia da força de trabalho, a qual é roubada de suas condições normais, morais e físicas, de desenvolvimento e atividade", como também "a exaustão prematura e o aniquilamento da própria força de trabalho". Os artesãos urbanos não podiam concorrer economicamente com os capitalistas, os capitais se acumulavam rapidamente: os artesãos falidos contribuíram para aumentar ainda mais a massa de proletários disponíveis para a indústria.

A formação, manutenção e controle de uma massa de indivíduos destituídos foi condição para a acumulação do capital. A consolidação das grandes propriedades agrárias, com a expulsão de grande número de camponeses, deu origem às massas de "homens livres", desprovidos de qualquer propriedade e desligados da autoridade de um senhor; prontos, portanto, para se tornarem mão de obra industrial. Nas fábricas não havia garantia contra acidente, nem indenização ou pagamento de dias parados. Havia, sim, imposição de multas por trabalhos mal executados, por matérias primas desperdiçadas, ou por instrumentos de trabalho prejudicados ou arruinados. A mecanização crescente desqualificava o trabalho, o que tendia a reduzir o salário. Havia também frequentes paradas da produção, provocando desemprego e diminuindo o salário, pois as horas ou dias não trabalhados não eram remunerados. A disciplina fabril era rigorosa, e as condições de trabalho não ofereciam a menor segurança. Em algumas fábricas a jornada de trabalho ultrapassava 15 horas, os descansos e férias não eram sequer cogitados, mulheres e crianças não tinham tratamento diferenciado.

“Massas de operários, comprimidos na fábrica, são organizadas como soldados. São colocadas, como soldados rasos da indústria, sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais subalternos e oficiais. Não são apenas servos da classe burguesa, do Estado burguês; dia a dia, hora a hora, são feitos servos da máquina, do vigilante, e, sobretudo, dos próprios burgueses fabricantes singulares. Este despotismo é tanto mais mesquinho, mais odioso, mais exasperante, quanto mais abertamente proclama ser o lucro o seu objetivo. Quanto menos habilidade e exteriorização de força o trabalho manual exige, quanto mais a indústria moderna se desenvolve, tanto mais o trabalho dos homens é desalojado pelo das mulheres. Diferenças de sexo e de idade já não têm qualquer validade social para a classe operária. Há apenas instrumentos de trabalho que, segundo a idade e o sexo, têm custos diversos. Se a exploração do operário pelo fabricante termina na medida em que recebe o seu salário, logo lhe caem em cima as outras partes da burguesia: o senhorio, o merceeiro, o penhorista, etc. As classes médias, os pequenos industriais, comerciantes e rentiers, os artesãos e camponeses, todas estas classes caem no proletariado, em parte porque seu pequeno capital não é suficiente para o empreendimento da grande indústria e sucumbe à concorrência dos capitalistas maiores, em parte porque a sua habilidade é desvalorizada por novos modos de produção. Assim, o proletariado recruta-se em todas as classes da população” (Manifesto Comunista).

À desqualificação do trabalho, consequência do maquinismo (pela simplificação das operações que cada operário deveria realizar: cada operário passou a dominar uma parte cada vez menor do processo produtivo) somava-se o alongamento da jornada de trabalho, consequência paradoxal de uma revolução produtiva que acarretava uma enorme economia de trabalho humano.

Serviço de Comunicação Social: Que impactos, sejam positivos ou negativos, a Revolução gerou no mundo?

Osvaldo Luis Angel Coggiola: A proletarização foi consequência da diminuição da oferta de trabalhadores na indústria, no momento que o mercado ganhava espaço, o que abriu espaço para o investimento na agricultura e especialização da produção. Sob o constante afluxo às cidades de levas proletarizadas de camponeses expropriados pelos cercamentos, foram criadas as condições para que alguns mestres de ofício, contrariando as normas corporativas, adquirissem, pela contratação de trabalhadores assalariados, o status de produtores manufatureiros. Em virtude do desemprego causado pelos cercamentos, uma massa de camponeses sem atividade deu origem a uma imensa quantidade de homens “livres” direcionados a trabalhar na indústria. Em só dois anos as exportações da Índia para Inglaterra atingiram mais de £ 6,3 milhões, enquanto as importações mal superaram £ 600 mil, perfazendo um desnível (déficit) de quase 90%. As riquezas da Índia afluíam para a Inglaterra e aceleraram de um só golpe a acumulação de capital, tornando possível a Revolução Industrial inglesa.  Em 1813, a Índia se transformou de país exportador em país importador dos produtos (tecidos, principalmente) fabricados com matéria prima indiana, cuja compra em regime de vendedor exclusivo lhe impuseram os ingleses, na sua condição de colônia; no meio tempo, entre o último quarto do século XVII e as primeiras décadas do século XIX, aconteceu a transformação da base produtiva na metrópole inglesa, gerando, segundo Hobsbawm, “a maior hecatombe social registrada em documentos históricos”, “uma mudança demoníaca (em que) se contam em centenas de milhares, ou até em milhões, as vítimas”.

O caráter da industrialização, centrado na socialização crescente da produção, baseada numa divisão social qualitativamente superior do trabalho, foi percebido contemporaneamente aos fatos. Os ganhos de produtividade decorrentes da divisão do trabalho, segundo Adam Smith, podiam ser atribuídos aos seguintes fatores: a) à maior destreza do trabalhador na realização de suas tarefas; b) à redução dos tempos mortos; c) à maior possibilidade de invenção de máquinas e mecanismos facilitadores do trabalho. A história das invenções não é tão somente a história das invenções senão, também, a de uma experiência coletiva que resolve progressivamente os problemas propostos por necessidades coletivas.  A mola mestra do processo era que as manufaturas se viam cada vez menos em condições de fornecer mercadorias em quantidades suficientes. Seus proprietários procuravam novos meios para produzir mais mercadorias mais depressa e mais baratas (e obterem também maiores lucros). O processo de trabalho, tal como existia na manufatura, não comportava uma importante divisão do trabalho. O manufatureiro distribuía a matéria prima e o artesão trabalhava em casa, recebendo o pagamento combinado. Os comerciantes contratavam artesãos para dar acabamento aos tecidos; depois, tingir e tecer; e finalmente fiar. Para superar isso surgiram as primeiras fábricas, com trabalhadores assalariados sem nenhum controle sobre o produto de seu trabalho; cada trabalhador realizava só uma etapa da produção.

A introdução de máquinas multiplicou o rendimento do trabalho, e aumentou espetacularmente a produção global. Dentro das fábricas, cresceu rapidamente a divisão do trabalho. Para maximizar o desempenho dos operários, as fábricas subdividiram a produção em várias operações, cada trabalhador executando uma única parte do processo, sempre da mesma maneira. Enquanto, na manufatura, o trabalhador produzia um produto completo, conhecendo assim todo o processo de produção, agora passava a realizar apenas parte deste, limitando seu domínio técnico sobre o próprio trabalho. As inovações técnicas começaram na indústria têxtil.

Os economistas não conseguiam explicar a ampliação da produção senão pela pressuposta “lei” de que “a produção cria sua própria demanda” (a “Lei de Say”), ou seja, pela lei da oferta e da demanda, que supõe que o lucro do capital se origina na esfera da circulação (ou comércio). Com a Revolução Industrial, o capital apropriou-se da esfera da produção: o capitalista industrial substituiu o comerciante como ator dominante na economia; houve também o declínio do artesanato tradicional, das associações corporativas e dos artífices. O aumento da demanda foi o fator deflagrador do processo, que adquiriu, uma vez posto em marcha, sua lógica própria. As novas condições econômicas permitiram o uso em grande escala dos progressos científicos e técnicos, e agiram novamente sobre a esfera da ciência e da técnica, exigindo novos progressos, para alimentar o crescimento da produção. A fábrica moderna foi filha do desenvolvimento da técnica, da tecnologia e da produção, possibilitada, por sua vez, pela expansão e unificação dos mercados internos (através da supressão dos impostos e alfândegas internas) e pela abertura dos mercados externos.

A indústria só se estabeleceu solidamente em menos de 10% da superfície dos continentes, mas colocou o mundo inteiro em estado de mobilização para seu uso. Inglaterra foi o ponto de partida, e depois o centro irradiador, da Revolução Industrial até meados do século XIX. Na Inglaterra e em outros países europeus (França, Bélgica, Holanda, e em regiões alemãs e italianas) se produziu também a ascensão social de um conjunto novo de pessoas e grupos. O poder político, nesses países e continentes, como também nos países da Europa central e meridional, ainda estava concentrado nas mãos da aristocracia rural, que se beneficiava com importações baratas, e não via razão alguma para apoiar um surto industrial interno. Não havia nenhuma organização industrial; era mais fácil aproveitar a oportunidade que a Revolução Industrial anglo-europeia lhes oferecia, a exportação de produtos agrícolas, facilitada pelo barateamento dos transportes. Isso impôs um abismo crescente entre o desenvolvimento econômico das áreas industrializadas e aquelas chegadas tardiamente ao desenvolvimento industrial. Antes da Revolução Industrial o progresso econômico era sempre lento (eram necessários séculos para que a renda per capita aumentasse sensivelmente); depois dela a renda e a população começaram a crescer de forma acelerada. O PIB per capita da economia inglesa cresceu, em média, 0,2% anual, entre os séculos XIV e XVII, tendo provavelmente crescido menos do que isso em todo o milênio precedente. O “crescimento econômico” era, portanto, praticamente imperceptível ou mensurável. A Revolução Industrial, entre 1780 e 1830, levou esse crescimento a 0,5% per capita anual durante o século XIX (ou seja, mais do que uma duplicação, sem considerar o salto qualitativo dado pelo crescimento demográfico), levando-o depois até quase 1% anual ao final desse século. Em dólares correntes, seria o equivalente à passagem de um PIB per capita de US$ 3.400 (em 1800) para um PIB per capita de US$ 6.300 (em 1906), em um período histórico de inflação muito baixa.

As cifras não conseguem dar conta da transformação da existência social propiciada pela Revolução Industrial, nem do abismo social aberto por ela. Desde o início da Revolução Industrial se fez presente a contradição básica da produção capitalista: a existente entre o caráter cada vez mais social da produção, e o caráter cada vez mais privado da apropriação da riqueza. Antes de 1750 não existia, no mundo todo, “crescimento econômico” perceptível ou mensurável. Paul Bairoch calculou, para 1750, o PIB dos atuais países “desenvolvidos” em 35 bilhões de dólares (de 1960), enquanto o PIB dos atuais “subdesenvolvidos” era, na mesma data, de 112 bilhões de dólares. Para 1980, o mesmo cálculo evidenciava uma inversão drástica: 3428 bilhões de dólares para os primeiros, 1227 para os segundos. Europa Ocidental, EUA e Japão detinham, em 1750, 24% do PIB mundial; em 1980, essa percentagem tinha crescido até 77% (ou, invertendo, as “áreas periféricas” eram responsáveis, em 1750, por 76% do PIB mundial; tendo retrocedido, em 1980, para 23%).

Se considerarmos o PIB por habitante, a distância entre países industrializados e não industrializados (ou tardiamente industrializados) se faz mais longa. Em dólares de 1960, na Europa Ocidental, esse PIB era de US$ 213 por habitante em 1800, e de 2325 em 1976 (uma multiplicação por 10,9); nos EUA, de 270 e 4044, respectivamente (uma multiplicação por 15); no Japão, de 160 e 2716 (uma multiplicação por 17); enquanto que, na África, as cifras respectivas eram de 130 e 289 (uma multiplicação por 2,2) e, na Ásia (excluída China comunista), de 190 e 294 (uma multiplicação por 1,5). A média do mundo industrializado evidencia, em dois séculos, uma multiplicação por 14,3 do crescimento econômico; na Ásia e na África, uma multiplicação por 1,8. O crescimento econômico, nos dois séculos após a Revolução Industrial, foi 8,2 (820%) vezes maior no mundo industrializado em relação à periferia.

O capitalismo industrial nasceu da necessidade de se tentar novos métodos de acumulação de capital, visto que a concorrência entre nações europeias para vender produtos agrícolas aumentava, e já não havia o exclusivismo de um país nesse comércio (outros países as produziam na América), o que provocava baixa de preços; grande número de conflitos internacionais, desestruturando suas economias; excessiva acumulação de capital (principalmente no caso inglês) que não comportava vultosos investimentos agrícolas e procurava novas alternativas. As contradições e deficiências econômicas do capitalismo comercial geraram outro capitalismo, o industrial, que mantinha os mesmos parâmetros objetivos de funcionamento, mas possuía também enormes diferenças. As colônias não mais geravam capitais, mas matérias-primas para as indústrias; era mais lucrativo dispor delas não como territórios acoplados à metrópole, mas como países cujas economias fossem dela dependentes, como fornecedoras de insumos e escoadouro de produtos manufaturados.

O progresso econômico gerado pela industrialização demorou décadas até irradiar para toda a sociedade. Em média, os homens do Norte europeu, durante o início da Revolução Industrial eram 7,6 centímetros mais baixos do que os que viveram 700 anos antes, na Alta Idade Média. A altura média dos ingleses caiu continuamente durante os anos de 1100 até o início da Revolução Industrial, quando a altura média começou a subir. Foi apenas no início do século XX que essas populações voltaram a ter altura semelhante às registradas entre os séculos IX e XI. Sob a pressão demográfica interna e com a vantagem da superioridade industrial e tecnológica - ou seja, também de um poder militar superior - os europeus se espalharam por todo o mundo, pacificamente ou não, se estabelecendo nas Américas e na Austrália, e controlando África e a Ásia. A Revolução Industrial iniciada na Inglaterra na segunda metade do século XVIII, precedida por uma revolução agrária, espalhou-se no século XIX para outros países que também estavam revolucionando sua agricultura, especialmente na Europa Ocidental e na América do Norte. Nos países de baixa produtividade agrícola, como os da Europa central e meridional, na Rússia, nos países da América Latina ou na China, que tinham setores industriais bastante pequenos, a indústria progrediu lentamente.

A Revolução Industrial e sua difusão, primeiro na Europa e depois, com ritmos diferenciados, pelo restante do mundo, alterou drasticamente as condições de existência da população humana, impondo-lhe um ritmo geométrico de crescimento, superando o ritmo aritmético que tinha seguido em toda a história precedente. Entre 1500 e 1780 a população da Inglaterra aumentou de 3,5 milhões para 8,5 milhões; entre 1780 e 1880 ela saltou para 36 milhões: ela apenas duplicou (ou pouco mais do que isso) em quatro séculos, e mais do que quadruplicou no século originado-inaugurado pela Revolução Industrial. O crescimento populacional mundial anterior à Revolução Industrial era, se medido pelos padrões posteriores, muito lento. Em 1750, a população mundial somava entre 650 e 850 milhões de habitantes. Em 1850, entre 1100 e 1300 milhões. Em 1900, 1600 milhões. Em 1950 se aproximou de 2,5 bilhões. Em 1960, havia ultrapassado três bilhões. A taxa média anual de crescimento foi de 0,7% de 1850 a 1900, de 1% entre 1900 e 1950. Foi de 1,8% na década de 1950, superou 2% na década de 1960, ultrapassando depois 3%. A Revolução Industrial, portanto, ensejou a maior explosão demográfica na história da civilização humana. A explosão demográfica não ocorreu simultaneamente. Começou na Europa: em 1750, a população da Europa era de 145 milhões de habitantes. Chegou a 265 milhões de habitantes em 1850, a 400 milhões de habitantes em 1900, e a 550 milhões em 1950. O desenvolvimento desigual e a polarização social, características de toda a história, atingiram níveis próximos ao paroxismo com a vitória do capital na esfera da produção que chamamos de Revolução Industrial.


Osvaldo Luis Angel Coggiola é professor titular de História Contemporânea da Universidade de São Paulo. Nascido na Argentina e expulso da Universidade de Córdoba no período ditatorial do país, concluiu sua formação na França. A partir de 1981, estabeleceu-se no Brasil, onde defendeu sua tese de livre-docência pela FFLCH. O professor é também autor de diversos artigos e livros, dentre eles A Revolução Chinesa (1985), Governos militares na América Latina (2001), Teoria Econômica Marxista (2021) e muitos outros.