Movimento das Cruzadas

Levantes militares e religiosos iniciaram no século 11; intencionavam defender a Cristandade: ameaçá-la significava colocar em risco a salvação das almas dos fiéis; seu maior antagonista era o Islamismo do Oriente Médio e sua expansão na Europa

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Pedro Seno
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De acordo com Victor Ruy Rossetti, “já não há mais que se falar em Cruzadas quando noticiamos as guerras modernas naquela região, mas a história local e hodierna sempre nos levará à relação entre Catolicismo, Judaísmo e Islamismo.” (Arte: Pedro Seno/ Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

As Cruzadas foram movimentos militares e religiosos que ocorreram durante a Idade Média, com o objetivo de proteger e expandir a Cristandade, com destaque para a reconquista e proteção da Terra Santa. Os cruzados eram homens europeus que buscavam participar da Paixão de Cristo - termo que descreve os eventos que antecederam a execução de Jesus - ao carregarem o símbolo da cruz e lutarem em nome da fé cristã. A Primeira Cruzada, entre 1096 e 1099, marcou o início de um período de Guerras Santas que durou até o final do século 13.

A relação entre Catolicismo, Judaísmo e Islamismo, especialmente no contexto das guerras no Oriente Médio, remete à importância histórica das Cruzadas e da Cristandade. Seu impacto foi unir motivações religiosas e políticas da comunidade cristã durante o período. Esses movimentos influenciaram as relações entre o poder temporal e espiritual, moldando a história do Oriente Médio e da Europa Ocidental até a última Cruzada. Sua relevância duradoura destaca a complexidade das interações entre diferentes religiões e os reflexos desses eventos na compreensão contemporânea de questões religiosas e geopolíticas.

Segundo Victor Ruy Rossetti, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, é difícil, com um olhar contemporâneo, compreender as motivações do movimento: “não se veem mais Cruzadas no mundo moderno porque já não há mais Cristandade nem interesse disseminado por sua existência”. No contexto acadêmico atual, elas são frequentemente subestimadas, assim como a própria Cristandade. Muitos professores e estudiosos têm dificuldade em contextualizar adequadamente esse período histórico, limitando suas conclusões e análises. Apesar da vasta bibliografia disponível sobre o tema, especialmente de autores estrangeiros, no Brasil, a atratividade e o aprofundamento nas pesquisas sobre as Cruzadas podem não ser tão expressivas. Confira a entrevista completa de Victor:

Serviço de Comunicação Social: O que foram os movimentos das Cruzadas, de maneira geral, e qual relação com seu período histórico?

Victor Ruy Rossetti: Não se pode compreender as Cruzadas sem compreender fundamentalmente a Cristandade. E a grande Cristandade deu-se no interior do que chamamos Idade Média. O homem moderno possui algumas dificuldades para despojar-se um pouco de suas vestes a fim de compreender aquele período. A finalidade lato sensu das Cruzadas era proteger e expandir a Cristandade. O objetivo (e destino) mais destacado das Cruzadas, embora não o único, era reconquistar e proteger a Terra Santa, outrora a terra que experienciou a Paixão de Jesus Cristo, tornando-as parte da Cristandade. Entenda-se: os cruzados eram homens que buscavam participar da Paixão de Cristo, e o faziam mesmo simbolicamente, pois portavam consigo o símbolo da cruz. Minha hipótese atual é esta: não se veem mais Cruzadas no mundo moderno porque já não há mais Cristandade nem interesse disseminado por sua existência. Acrescente-se: não é estranho que na prática vários desvios do planejamento inicial tenham ocorrido ao longo das jornadas, pois se tratava de uma nova instituição. Quando falamos da Primeira Cruzada (1096-1099), por exemplo, a que se tornou a mais famosa, estamos tratando do início do período que foi o auge das Guerras Santas, de fins do século XI até o fim do século XIII. Dito isso, garanto que poderíamos aprofundar bem mais o conceito de Cruzada, pois é tão rico quanto complexo. Para se ter uma ideia, a maioria dos historiadores que investiguei faz questão de informar aos leitores suas dificuldades para definir as fronteiras de tal questão. São corretamente prudentes, a meu ver.

Serviço de Comunicação Social: Que repercussão ou importância tiveram as Cruzadas para a época e para os séculos adiante?

Victor Ruy Rossetti: As repercussões sempre foram gigantescas, pois a existência da Cristandade envolve a ordenação de todos os aspectos da realidade ao Reinado Social de Cristo, todos. Envolve a ordenação do poder temporal ao poder espiritual (Igreja Católica), e de ambos a Deus. Não é coincidência que a Igreja visível seja reconhecida como Igreja Militante, diferente da Igreja Triunfante, aquela em que repousam os salvos, e diferente da Igreja Padecente, referente ao Purgatório. Daí a famosa frase de São Paulo: “Combati o bom combate.” O combate é sempre espiritual, sendo que às vezes se expressa fisicamente no campo de batalha em prol da Cristandade. Assim entendiam claramente os cruzados. Ameaçar a Cristandade significa ameaçar a salvação das almas dos fieis, e, naquele período, o Islamismo era a maior ameaça, na região do atual Oriente Médio e na própria Europa. Para os séculos XII e XIII os impactos na região do Levante foram tão importantes quanto foram para a região que hoje é a Europa Ocidental. Novas configurações sociais formaram-se com a estruturação dos chamados Estados Latinos do Oriente, nascidos sob os preceitos católicos, ainda que com obstáculos diversos. Mesmo nos dias de hoje, séculos depois, esse assunto corretamente não nos escapa, tomando em conta sobretudo as guerras intermináveis na região do Oriente Médio, e muitas vezes envolvendo países ocidentais. É claro que já não há mais que se falar em Cruzadas quando noticiamos as guerras modernas naquela região, mas a história local e hodierna sempre nos levará à relação entre Catolicismo, Judaísmo e Islamismo.

Serviço de Comunicação Social: De acordo com sua própria experiência, como as Cruzadas são estudadas e inseridas no contexto acadêmico atual? (Mais ou menos voltado ao didático, existe carência ou não de pesquisas, entre outros assuntos que achar pertinente) 

Victor Ruy Rossetti: Boa pergunta. É um tema maltratado em geral, assim como é o tema da Cristandade. A maioria dos professores não consegue compreender o que foi a Idade Média nem o espírito católico do período. Em termos leigos, e muitas vezes mesmo acadêmicos, isso faz com que as conclusões atuais atribuídas às Cruzadas dificilmente ultrapassem as fronteiras do interesse material. Tais conclusões são falsas ou, na melhor das hipóteses, bem incompletas. Não creio que haja carências quanto ao estudo das Cruzadas em ambiente acadêmico. A bibliografia elaborada até hoje sobre esse campo historiográfico preenche dezenas e dezenas de páginas. Eu estou catalogando as obras há 5 anos. Por outro lado, penso que no Brasil, especificamente, este tema talvez não seja tão atraente quanto é em outros lugares. 99% da bibliografia que estudo sobre as Cruzadas provêm de autores estrangeiros. A maioria dos artigos e dos livros não possui tradução, sem dúvida. Eis uma das minhas áreas de atuação: traduzir essas obras. Isso não é um problema, é claro, afinal, o que importa mais é a ciência dizer-nos o certo sobre as coisas, independentemente da origem das pesquisas. Por sua vez, os livros didáticos que visitei são todos incompletos acerca desse tema, bem como a respeito da Cristandade, o que não me estranha. São superficiais.


Victor Ruy Rossetti é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo