Tecnologia transforma comportamento e personalidade do ser humano

Pesquisa da USP mostra que a tecnologia vai além de algoritmos ou uma simples ferramenta de comunicação. Para pesquisador, ela está tão inserida no cotidiano das pessoas que é capaz de criar relações com o indivíduo e influenciar na sua forma de pensar

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Lívia Lemos
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Imagem: Freepik

Em um celular, uma criança assiste uma dança no Tik Tok e decide decorar os passos. Também, por meio de um tablet, uma costureira aprende uma nova técnica de costura no YouTube. No Facebook, um usuário lê posts sobre política e muda sua visão partidária. Esses são alguns exemplos de como a tecnologia está tão presente no cotidiano humano, sendo capaz de influenciar nas suas formas de pensar, escolhas, hábitos, comportamento e personalidade, conforme revela uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em sua tese de doutorado, Victor Eiji Issa estudou como a tecnologia atua como um mecanismo de transformação na mente humana, criando relações e conexões com o indivíduo.

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Imagem: Arquivo Pessoal
 

Victor foi professor de Sociologia na rede estadual de 2014 a 2017. Ele explica que seu interesse pelo tema surgiu ao perceber como os jovens da atualidade possuem uma forma diferente de absorver e se relacionar com a informação, devido ao uso constante da internet. O pesquisador queria entender "como o uso de celulares, computadores e aplicativos estava relacionado não só a uma mudança de comportamento e visões de mundo das pessoas, mas também a mudanças cognitivas." A partir daí, propôs estudar como se dá essa troca entre a tecnologia e o ser humano. Victor pontua que essa troca, que vai influenciar no comportamento humano, começa na mente.

O que é a mente?

Victor destaca que a mente humana é um sistema muito complexo que vai além do que apenas uma parte do cérebro ligada à consciência, imaginação e sensação. Para explicar a sua complexidade, o cientista recorre à teoria da ecologia da mente, de Gregory Bateson, que compreende que a mente humana não se resume à consciência. Isso porque nem todos os processos mentais requerem o uso dela, ou seja, não é preciso necessariamente pensar naquilo para se fazer.

Como exemplo, o pesquisador menciona a capacidade do ser humano em caminhar sem perceber que está fazendo isso: ele apenas anda. Essa ação de caminhar é feita de uma maneira inconsciente na qual o corpo humano, de forma automática, interage com o ambiente. O cientista acrescenta que “o processo mental é um complexo sistema que está constantemente se atualizando e respondendo não apenas a pessoas mas a outros seres, às coisas e ao mundo ao nosso redor”.

Nesse sentido, se a mente humana é a responsável por absorver, responder e interagir, através do corpo, com as coisas que fazem parte do que o pesquisador chama de “nosso ecossistema”, ela também interage com a tecnologia. Essa interação acontece por meio de imagens, informações, pessoas e novas formas de linguagem que estão na internet e são absorvidas pela mente do usuário.

O cientista social defende que a tecnologia não se resume a um mundo virtual, pelo contrário, ela está à nossa volta, fazendo parte do nosso ambiente e realidade: “As tecnologias digitais não são apenas ferramentas que nos transportam para um mundo fora da realidade, mas sim que são pontos de encontro”. São nesses pontos de encontro, por meio das telas, que a mudança começa a acontecer, seja na forma de pensar ou de agir.

Para entender as formas de interação entre o ser humano e a tecnologia, Victor entrevistou indivíduos de diversas faixas etárias. Ele ressalta que a facilidade ou não com a tecnologia não está associada com a idade ou geração de uma pessoa, mas sim com sua familiaridade e contato com os equipamentos: “Duas crianças da mesma idade podem não ter o mesmo uso igual da tecnologia, logo, suas experiências serão diferentes”, afirma. Ele também destaca que as trocas com as tecnologias são singulares, podendo ser benéficas ou maléficas.

Era conectada e seus malefícios

Victor estudou como as redes sociais potencializaram a disseminação de fake news e a polarização que ocorreu em 2018 nas eleições presidenciais entre Jair Messias Bolsonaro e Fernando Haddad. Ele analisou como as notícias, posts e até mesmo memes que circularam nas mídias contribuíram para mudar visões partidárias de pessoas. Este foi o caso do pai de Pietro, um dos entrevistados do pesquisador. O jovem conta que notou uma mudança brusca na visão política de seu pai durante as eleições. Até então, o pai de Pietro não apoiava Jair Bolsonaro.

Ao receber diversas mensagens pelo Whatsapp que ressaltavam o perigo que o Brasil corria caso o PT vencesse as eleições e como o partido “afundou” o país, o pai de Pietro passou a enaltecer a figura de Bolsonaro. “Pietro ficou abismado como o pai mudou a forma de pensar. Do centro-direita, ele foi para direita. Uma frase muito recorrente que ele disse foi: ‘meu pai virou um bolsominion’ ”, conta Victor.

O pesquisador também chama atenção para o poder que as telas têm quando se trata de imagens e de como a tecnologia coloca o ser humano em estado de ciclo. Em sua pesquisa, ele entrevistou Julia (pseudônimo) que, durante a pandemia, teve seu primeiro - de muitos - contato com a pornografia, acarretando em um vício: “Nesse caso, Júlia relatou que assistia vários vídeos até encontrar aquele que seria o melhor para ter um orgasmo. O digital potencializou essa questão da pornografia, pois estabelece um ciclo: o algoritmo lê o que você costuma pesquisar e oferece mais do mesmo. A tecnologia tende a reforçar padrões que já existiam”.

Era conectada e seus benefícios

Victor pontua que seu estudo não tem o objetivo de demonizar as telas, pelo contrário, admite os pontos positivos que a tecnologia trouxe ao longo dos anos. “A gente vive na era mais bem informada, graças à internet”, acrescenta ele. Um dos exemplos estudados pelo cientista foi o de Maria, uma senhora que trabalha como costureira há 58 anos. Sendo de uma geração na qual, para adquirir novos conhecimentos, era preciso recorrer a livros ou cursos, a senhora encontrou no Youtube um espaço para aprender e desenvolver suas habilidades de costura: “Hoje, ela utiliza o Youtube para assistir vídeos de costura e aprender e comparar as técnicas”, explica Victor.

Em 2020, com o início da pandemia, o mundo inteiro se viu obrigado a ficar isolado. Alice (pseudônimo) foi um dos milhares de casos de pessoas que foram afetadas psicologicamente devido a necessidade de confinamento. Ela tentou sucídio, encontrando nas telas a salvação para continuar interagindo com amigos e familiares: “Alice diz que não é exagero falar que as tecnologias salvaram sua vida, pois foi quando ela passou a utilizar e interagir com outras pessoas, em aplicativos de conversa e com os próprios conteúdos disponibilizados pelas mídias sociais”, diz Victor.

Sarah é uma menina de 10 anos e como boa parte de sua geração, vive conectada. O pesquisador explica que seu caso é peculiar: a menina desenvolveu o interesse em temas sobre atividade paranormal por influência de sua família e manteve apenas esse gosto na internet, pesquisando por vídeos que falam sobre esoterismo. A mudança, entretanto, aconteceu quando descobriu o Tik Tok e suas dancinhas, passando a aprender e praticá-las, um elemento que, hoje, faz parte da sua personalidade.

A tese de doutorado O Mundo e as telas: vivendo em um emaranhado de conexões foi defendida por Victor Eiji Issa em junho de 2024 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e orientada pela professora Sylvia Maria Caiuby Novaes.

A reportagem em áudio está disponível no Spotify: