População negra do século 20 ocupou ruas de São Paulo como forma de resistência contra o branqueamento

Pesquisa de mestrado destaca o papel da ocupação do espaço público e do trabalho ambulante para a população negra de São Paulo no pós-abolição

Por
Redação
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Duas mulheres conversando, nas proximidades do atual parque Dom Pedro II – Foto: Vincenzo Pastore / Acervo IMS

Após o fim da escravatura no Brasil em 13 de maio de 1888, o racismo e a injúria racial ainda não eram crimes no País e não havia nenhum programa ou projeto por parte do governo que tivesse como objetivo a inserção da população negra na sociedade brasileira. Com todos esses fatores, como a população negra sobreviveu neste período? É essa pergunta que se propõe a responder Amanda de Lima Moraes na sua dissertação de mestrado. Intitulada Populações negras em São Paulo: usos e apropriações da rua no início do século XX (1900-1930), a dissertação foi entregue à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. Durante sua pesquisa, Amanda destacou que, além dos desafios já citados, a população negra teve que enfrentar um plano de “branqueamento” do País. Nesse contexto, as ruas da cidade foram um importante espaço de resistência.

Amanda atuou como professora em escolas da Prefeitura de São Paulo, o que despertou nela o interesse de fazer uma pesquisa que não ficasse presa ao âmbito acadêmico, mas que pudesse ser debatida em diferentes áreas da sociedade. Foi a partir dessa experiência e de sua identificação como mulher negra que a professora decidiu fazer a pesquisa sobre a resistência negra no espaço urbano.

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Amanda Lima - Foto: Arquivo pessoal

Plano de “branqueamento"
O plano de branqueamento, que visava à “europeização” do Brasil, era baseado em teorias racistas pseudocientíficas difundidas no século 19. Essas ideias propagavam a crença de que a miscigenação entre negros e brancos resultaria no desaparecimento das características negras ao longo das gerações. Segundo Amanda, esse projeto foi promovido pelo Estado por meio de políticas públicas que estimularam a imigração europeia em massa, especialmente em São Paulo.

“A dificuldade no pós-abolição que pessoas negras tinham de se inserir no mercado de trabalho aconteceu porque houve uma grande quantidade de trabalhadores imigrantes que foram considerados mais preparados. Um discurso muito racista mesmo “, afirmou Amanda em entrevista ao Jornal da USP.

A pesquisadora coletou dados que corroboram esse entendimento. Um deles foi o crescimento da população da cidade de São Paulo, segundo a cor. O aumento desproporcional da população branca se dá pelo incentivo à imigração europeia para a cidade.

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Fonte: dados da dissertação, adaptados do livro Nem tudo era italiano, de Casé Angatu. Os números originais vieram da pesquisa de Florestan Fernandes
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Retrato de homem idoso recostado em grade metálica da Rua São João. São Paulo, SP, Brasil, circa 1910 – Foto: Vincenzo Pastore / Acervo IMS

A ideologia racista, reforçada pelas elites e pelo Estado, gerou um ambiente de exclusão sistemática da população negra. Apesar disso, as ruas da cidade se tornaram palco de resistência e sobrevivência. Amanda destaca que as ruas não eram apenas espaços de trânsito, mas de organização social, trabalho e cultura. “Os trabalhadores ambulantes, como quitandeiras e vendedores, ocuparam esses espaços públicos. Era uma forma de resistir à tentativa de apagamento imposto pelo projeto de modernização”, explica a pesquisadora.

A principal atividade exercida por negros na época era a venda ambulante, o que por muitas vezes incomodava os donos de estabelecimentos comerciais em São Paulo. Amanda encontrou alguns relatórios de reclamação destes estabelecimentos que se referiam aos vendedores ambulantes como “pragas” e que precisavam ser proibidos.

O trabalho das quitandeiras também foi muito importante e bem documentado. As quitandeiras eram mulheres negras que vendiam peixes frescos ou fritos, quitutes e refrescos. Muitas se vestiam com roupas culturalmente africanas, com muitas cores e uso de turbantes. O ofício de quitandeira não começou no pós-abolição, tendo havido inclusive mulheres negras que, antes da Lei Áurea, compraram suas cartas de alforria por meio deste trabalho.

“É importante falar que é um ofício que já era feito no território africano, então há um saber e uma forma de comercializar que já vêm com essa população negra africana. Muitas quitandeiras, por um período, eram mulheres que foram escravizadas, mas muitas quitandeiras também eram mulheres livres, e no pós-abolição elas conseguem se reapropriar do espaço.” - Amanda de Lima Moraes.
Opressão e resistência

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Duas mulheres conversando, nas proximidades do atual Parque Dom Pedro II – Foto: Vincenzo Pastore / Acervo IMS

O processo de modernização do Brasil desejado pelas elites incluiu reformas urbanísticas que visavam ao “embelezamento” das cidades. Frequentemente, as reformas envolviam a remoção de populações negras dos centros urbanos e intervenções que limitavam seus modos de vida. Contudo, Amanda conta que, mesmo diante dessas adversidades, a resistência negra manteve vivas as tradições e dinâmicas comunitárias. 

“A ocupação do espaço público era também um ato político. Essas pessoas resistiam em uma sociedade que insistia em negá-las”, destacou.

É possível encontrar evidências de discriminação reproduzidas por prefeitos de São Paulo. Durante a gestão de Antônio Prado, entre 1899 e 1911, houve a demolição da histórica Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e a destruição de cortiços no centro de São Paulo, onde a maioria dos moradores eram negros. 

Washington Luiz, prefeito de São Paulo entre 1914 e 1919, chegou a fazer discursos públicos em que usava termos como “negros vagabundos” e “negras edemaciadas pela embriaguez”, com a intenção de marginalizar a população.

A dissertação também explora os impactos duradouros desse período histórico. Segundo a pesquisadora, o projeto de branqueamento não apenas excluiu populações negras da narrativa oficial de progresso, mas também estruturou desigualdades que persistem até hoje. De acordo com a dissertação, os efeitos dessas políticas são visíveis na distribuição desigual de recursos e no racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira.

Por outro lado, a resistência da população negra foi fundamental para a construção de uma identidade coletiva e de espaços de pertencimento. Amanda destaca que a cultura negra desempenhou um papel essencial na formação de São Paulo como a conhecemos hoje, seja em relação a festividades, culinária e até modos de organização social.

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Mulher de costas conversa com homem. São Paulo, SP,
Brasil, circa 1910 – Foto: Vincenzo Pastore / Acervo IMS

Ao longo do texto, Amanda enfatiza que a pesquisa não busca apenas contar uma história de opressão, mas também de resistência e criação. Inspirada por autoras como Conceição Evaristo e Lélia Gonzalez, ela reforça a importância de dar voz às narrativas negras. 

“É necessário reconhecer que a história da população negra é importante na formação do Brasil”, conclui.

 

*Por José Adryan, estagiário sob supervisão de Silvana Salles

Texto original: https://jornal.usp.br/diversidade/populacao-negra-do-seculo-20-ocupou-r…