Docente explica que é possível utilizar as produções do período colonial sem entendê-las como subproduto da dominação cultural europeia sobre as nações conquistadas
Na noite desta quinta-feira, 13 de março, Adma Fadul Muhana, Professora Titular do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, ministrou a Aula Magna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Com o tema “De literaturas e colonizações”, ela apontou o desafio de estudantes e professores brasileiros para usufruir da literatura clássica, que remete às origens da colonização europeia, sem resumí-la a um subproduto da dominação.
Refletindo sobre o passado colonial e as origens do conceito de nação, Adma defendeu a provincialização da Europa, sugerida pelo historiador indiano Dipesh Chakrabarty. Ela explica que não se trata de um processo de rejeição ou descarte do legado europeu, o qual ela considera indispensável apesar de inadequado, mas uma forma de renovar esse pensamento a partir de autores à margem da literatura de grandes escritores. “Não sendo precursores nem restos dos outros autores, esses escritores fornecem um campo imenso de redefinições. Eu tenho incentivado nossos alunos e orientandos a estudar autores e temas que aparecem com pouco destaque nas histórias da literatura”, conta.
Formalmente apresentada pelos diretores da FFLCH, Adrián Pablo Fanjul e Silvana Nascimento, ela cumprimentou a todos e discursou por cerca de cinquenta minutos. A transmissão da Aula Magna pode ser assistida na íntegra no canal do Youtube da FFLCH.
Como foi a aula
A professora começou sua apresentação agradecendo a oportunidade e fazendo um apontamento de que não ensina literatura em suas aulas: “Partindo do pressuposto que literatura implica uma escrita autoral e imaginativa que prima pela singularidade e originalidade, o que eu ensino das Letras do século 13 ao 18 na verdade é uma espécie de sistema literário em que cada escritor debate e incorpora outros escritores visando a sua inclusão neste sistema”.
Ela explicou que o próprio conceito de literatura nacional foi concebido depois do período trabalhado em suas aulas. Com a ideia de nação — conjunto de elementos culturais históricos e linguísticos que compõem uma identidade ou um senso de pertencimento coletivo de um povo — legitimando a formação dos Estados modernos, Adma conta que a literatura se tornou um vetor de consolidação da identidade nacional. Isso fez com que os países colonizados pela Europa precisassem criar sua própria literatura para reforçar sua independência e autonomia — como o caso do Brasil. Para ela, este é o ponto que nos leva à reflexão (e desafio) de como aproveitar a literatura clássica sem entendê-la como um subproduto da dominação europeia.
A docente destacou a importância de se estudar as produções literárias quando não se tinha estados nacionais. “Dificilmente encontramos referências ao local de nascimento de um trovador, porque muito mais importava para a apreensão de sua poesia a circulação de suas trovas nos jograis de uma certa região”. Contudo, isso mudou com a expansão colonial a partir do século 15, quando os europeus impuseram sua cultura e valores aos povos dominados. Citando o pensador palestino Edward Said, ela chama atenção para a atuação de parte dos colonizados que colaboraram com a dominação, pretendendo usufruir das trocas coloniais. “É importante não omitir que isso [a colonização] foi a troco de alianças com os colonizados e desavenças entre os próprios colonizadores”, explica.
Ainda sobre dominação, Adma falou sobre obras épicas que suscitaram o espírito da guerra, seduzindo os próprios povos conquistados e dificultando a rejeição ao colono. “Penso que é fundamental estudar ‘Os Lusíadas’ principalmente para dissolver uma aura imperialista que ainda encanta a tantos”. Citando outros poemas contemporâneos à obra de Camões, ela aproveitou a oportunidade para contrapor os conflitos daquela época, que contavam com o conceito de “guerra justa” — onde não se ataca mulheres, crianças e lavouras —, à guerra de Gaza, que já assassinou mais de 46 mil pessoas segundo o Ministério da Saúde palestino.
Adma terminou a Aula Magna com o caso do pensador português Gabriel da Costa que, temendo a perseguição da Inquisição, abandonou a faculdade de Direito em Coimbra e transferiu os negócios da família para os Países Baixos. Lá, converteu-se ao judaísmo e mudou seu nome para Uriel da Costa. Contudo, por não aceitar determinadas práticas e interpretações judaicas do Antigo Testamento, acabou banido da nação e se isolou em uma espécie de religião natural, com a crença em Deus e diretrizes éticas universais, como respeitar a vida e honrar os antepassados. “Não tendo seus escritos em qualquer literatura nacional, Gabriel da Costa pôs à mostra que a ideia de um povo judaico vinculado por uma origem comum e que ainda hoje justifica a alegação de direito sobre um território em nome dessa unidade de origem é uma falsidade que visa tão somente os interesses de uma parte de uma elite no poder”. Por fim, ela criticou a ideia de uma literatura nacional, justamente por reconhecer o processo de apropriação e domínio das nações colonizadoras.