Pesquisa aponta semelhanças em políticas criminais nos governos FHC e Lula

Dados mostram como políticas criminais de FHC e Lula aumentaram a repressão do Estado contra o crime organizado e multiplicaram a população carcerária no Brasil

Por
Paulo Andrade
Data de Publicação

Apesar de estarem em pólos opostos política e ideologicamente, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva implementaram políticas criminais semelhantes em seus governos, aumentando a repressão do Estado com a justificativa de serem medidas contra o crime organizado. O que se viu, contudo, foi um aumento da população carcerária pobre e negra no Brasil. A afirmação é o resultado de pesquisa da FFLCH, defendida em janeiro, que avaliou essas políticas e os discursos adotados pelos governos nos períodos 1995-2002 e 2003-2010. 
 
O trabalho, do pesquisador Pedro de Almeida Pires Camargos, estudou a chamada “Guerra ao Crime Organizado”, um mecanismo do Estado para justificar o uso de violência contra setores marginalizados da sociedade, sob a justificativa de que seria uma forma de combater grupos que são considerados por governantes inimigos da nação, como facções criminosas, traficantes, milícias, entre outros. 
 
A ideia deste tipo de conflito está em construção no Brasil desde os anos 1980 e, com mais intensidade, nos anos 1990 e 2000. E é um desdobramento da “Guerra às drogas”, que teve início nos EUA nos anos 1970 e se espalhou mundo afora com embates famosos contra os cartéis mexicanos e o chamado “narcotráfico” na Colômbia, por exemplo.
 
Essa linha de combate ao crime organizado gerou o que Camargos, a partir de outras pesquisas realizadas na área, define como “Guinada Punitiva”, que são políticas adotadas em diversos países, principalmente por governos com características neoliberais, por meio de endurecimento de leis, megaoperações policiais e fortalecimento de instrumentos repressivos em geral. 
 
No Brasil, tais linhas foram implementadas pelos governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2010), e continuam sendo implementadas até os dias de hoje. “Com o espraiamento de uma racionalidade neoliberal calcada no individualismo extremo e na lógica da competição constante, o que se vê é uma atualização dos discursos de combate àqueles definidos como possíveis geradores de riscos à ordem estabelecida. No plano político, isso se manifesta em um reforço de medidas penais e políticas repressivas, apresentadas por governantes como uma espécie de 'única alternativa' para lidar com os mais variados problemas sociais", analisa o pesquisador.
 
O fracasso humanitário dessas políticas, assim como a Guerra às Drogas no âmbito internacional, gerou um aumento da população carcerária, principalmente a partir da Lei de Drogas de 2006, quando foi descriminalizado o porte de drogas e aumentada a repressão policial contra o comércio de tais substâncias. Os índices que já cresciam de forma acentuada desde a década anterior explodiram a partir de 2006. Do ano de promulgação da lei até os dias de hoje, a população carcerária cresceu de forma contínua: de 401.236 pessoas presas para 755.274, em 2019. O número de pessoas presas por crimes ligados a drogas foi de 47.472 pessoas em 2006 (o que representava cerca de 14% do total) para 193.309 (quase 30% do total), um aumento de 307%.   
 
Semelhanças e diferenças
 
O pesquisador explica que seu levantamento mostrou linhas semelhantes nas políticas criminais de ambos os governos. “Ainda que apresentasse críticas à gestão de FHC e trouxesse novas propostas, a chapa petista trazia, em seus programas de governo e projetos de segurança, uma visão da área bastante semelhante à de seu antecessor. As propostas de Lula para a segurança também tentavam aglutinar discursos voltados à proteção dos direitos humanos e consolidação da democracia, com reforma, modernização, integração e fortalecimento das agências repressivas (em especial das polícias) e com um 'combate implacável contra a criminalidade', em especial contra a figura do chamado Crime Organizado. Leis penais abertas e repressivas, reforço da 'guerra às drogas', expansão penitenciária, apoio a operações policiais violentas, restrições de direitos de acusados e reforço da militarização foram marcas dos dois governos".
 
Apesar de semelhantes, o governo Lula especificamente adotou uma abordagem mais ligada às políticas sociais que marcaram sua gestão. A justificativa era que o combate ao crime organizado e suas causas era um meio de garantir a promoção dos direitos humanos à população. “O governo Lula, em algumas de suas políticas, procurou sair de respostas exclusivamente repressivas, assim como reconheceu o papel das desigualdades sociais como parte significativa do problema da violência no país. Durante sua administração, algumas medidas buscaram inserir o combate ao chamado crime organizado em um quadro mais amplo de ampliação de oportunidades econômicas para populações tidas pelo governo como ‘vulneráveis’", explica o pesquisador.
 
Camargos acredita que a pesquisa abre espaço para repensar políticas criminais, expor erros de percurso e corrigi-los. A importância se apresenta principalmente no Brasil atual de Jair Bolsonaro, cujo governo vem sendo marcado por ataques a direitos humanos, aumento nos níveis de violência policial e perseguição de opositores e minorias em geral. “Acredito que a leitura de nosso passado recente pode nos ajudar a entender como os supostos consensos securitários baseados na construção de inimigos ajudaram a construir a tragédia em que vivemos hoje. Os consensos em torno do aumento das punições e da violência estatal jamais fortaleceram e nem fortalecerão projetos comprometidos com uma ampliação real e popular da democracia e da cidadania, assim como não protegeram e não protegerão direitos humanos tomados em uma perspectiva coletiva. A ideia é que a pesquisa possa ajudar a repensar políticas criminais para além destas engrenagens que reforçam a exclusão da população marginalizada em nosso país".

A dissertação Guerra ao Crime Organizado e Política Criminal nos Governos FHC e Lula: entre os processos de neoliberalização e as hibridizações da guinada punitiva brasileira, de Pedro de Almeida Pires Camargos e orientada pelo professor Laurindo Dias Minhoto, foi defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH USP, em janeiro de 2022.