Guerra do Paraguai

Guerra foi o maior e mais letal conflito ocorrido na América Latina, colocando Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Guerra do Paraguai
(Arte: Pedro Fuini)

A Guerra do Paraguai, ou Guerra contra a Tríplice Aliança, foi o maior e mais letal conflito armado ocorrido na América Latina. Entre 1864 e 1870, Brasil, Argentina e Uruguai, formando a Tríplice Aliança, guerrearam contra o Paraguai liderado por Solano López. Na ocasião, o Império do Brasil mobilizou 139.000 soldados, equivalente a 1,5% de sua população na época. O dia 27 de dezembro marca a invasão do Mato Grosso pelas tropas paraguaias.

Assinado em 1865, o Tratado da Tríplice Aliança justificava uma guerra contra o governo autoritário de Solano López com a intenção de libertar o povo paraguaio - o que se mostrou uma falácia. Além disso, a propaganda bélica dos países aliados alegava que levaria a civilização liberal e o progresso ao Paraguai. 

De acordo com Ronald León Núñez, doutor em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o conflito representou na verdade um choque entre dois modelos de acumulação capitalista distintos: enquanto o Paraguai possuía uma economia estatizada, protecionista e politicamente independente, os outros governos da região tinham uma economia baseada no livre-comércio, com forte dependência do capital e do comércio europeu, em especial da Inglaterra. Esta financiou os países da Aliança e saiu beneficiada com as dívidas contraídas pelos países envolvidos.

O Paraguai sofreu uma derrota de enormes proporções: perdeu dois terços de sua população (o que representa 80% das mortes na Guerra) e 40% de seu território, anexado por Brasil e Argentina, além de ter sua infraestrutura destruída. Além disso, foi ocupado pelas tropas brasileiras até 1876, e pelas tropas argentinas até 1879. Foi ainda imposta uma dívida de guerra impagável aos paraguaios, que só seria perdoada em 1942. “As cidades foram saqueadas, as mulheres estupradas e houve tráfico de prisioneiros e crianças, que eram vendidos como escravos no Brasil ou repartidos como “criados” na Argentina”, explica o pesquisador.

De acordo com Núñez, apesar do conflito ser pouco estudado e debatido no Brasil, é um assunto complexo que gera mitos e polêmicas historiográficas. Se algumas tendências enfatizam o contexto regional da guerra por um lado, outros ressaltam o peso da influência britânica no contexto mundial por outro. Para o pesquisador, a tendência preponderante na academia atualmente enfatiza o contexto regional do fato, argumentando que o conflito se deu por disputas seculares de territórios, livre navegação dos rios interiores e acesso a recursos. No entanto, Núñez considera errôneo enfatizar apenas um dos contextos. “A Guerra, evidentemente, possuiu um contexto local. Obedeceu às disputas entre interesses dos Estados nacionais, controlados por facções das burguesias nativas. Contudo, esse jogo de interesses nunca esteve divorciado da dinâmica da economia e política mundiais”.

Núñez é autor dos livros Revolución y Genocidio - El mal ejemplo de la independencia paraguaya y su destrucción (2011) e La Guerra contra la Triple Alianza en debate (2019), este último resultado de uma pesquisa de 14 anos e que foi publicado em português recentemente. O autor acredita que a Guerra é um assunto de extrema atualidade, e enxerga como fundamental que os brasileiros se apropriem deste capítulo de sua história. “Isso é fundamental para que os brasileiros conheçam melhor suas próprias raízes, o caráter da sua classe dominante e das forças armadas, bem como a relação do Brasil com os povos vizinhos e irmãos”. 

A seguir, a entrevista completa com Ronald León Núñez:

 

Serviço de Comunicação Social: Em que contexto eclodiu a Guerra do Paraguai?

Ronald León Núñez: A Guerra contra o Paraguai (1864-1870), apesar de pouco estudada e debatida no Brasil, é uma questão muito complexa, poliédrica, que continua produzindo e reproduzindo mitos e polêmicas historiográficas. 

Isso não é casual. Trata-se do maior conflito armado internacional desenvolvido na América Latina: a mais longa, mais cara e a mais letal de todas as guerras. Durou mais de cinco anos e envolveu a população de quatro Estados cujas superfícies atuais somadas representam dois terços do nosso subcontinente.
Estima-se que o Império do Brasil mobilizou 139.000 soldados durante a Guerra, isto é, 1,5% de sua população naquele momento. Para termos uma ideia, isto equivaleria, hoje, a uma mobilização militar de cerca de 3,2 milhões de soldados.

A Guerra, como veremos, impactou profundamente todas as nações beligerantes. O Paraguai, no entanto, sofreu as piores consequências, sendo destruído, prostrado até hoje. O país sofreu uma derrota nacional de proporções históricas, convertendo-se em uma semicolônia oprimida e explorada não apenas pelos sucessivos imperialismos hegemônicos, mas também pelas burguesias regionais mais fortes, a brasileira e a argentina.

Atualmente, a tendência historiográfica preponderante na academia enfatiza o contexto regional do fato. Argumenta que as causas da Guerra foram as disputas seculares por territórios, livre navegação dos rios interiores e acesso a recursos. Em suma, a Guerra seria produto do convulsionado processo de consolidação dos Estados nacionais envolvidos. Esta é uma visão importante, que investiga detalhadamente os pormenores da geopolítica local daquele período e reduz, ademais, o risco de incorrer em distorções próprias do nacionalismo. Aprofundar a análise das causas que emanam do contexto regional é correto, mas parcial. 

O problema – em primeiro lugar metodológico, mas com efeito sobre as conclusões obtidas – é que essa ênfase deprecia ou mesmo anula a análise do contexto mundial, que condicionava a dinâmica regional. A América do Sul, lembremos, era parte de uma totalidade econômica e política globais. 

Neste contexto, a partir da década de 1990, que marcou o auge do neoliberalismo e dos enfoques pós-modernos em diversas áreas da ciência, muitos trabalhos, ainda que instigantes e ancorados em sólida pesquisa documental, limitam-se a sustentar, repetitivamente, que a Guerra não passou de um “conflito regional”. Essa insistência é utilizada nos meios acadêmicos para se contrapor à chamada “tese imperialista”, que advoga um suposto protagonismo britânico na Guerra, defendida por historiadores dependentistas e americanistas nas décadas de 1960 e 1970. Esta “tese regional”, no entanto, também é problemática e reducionista, por adotar um critério geográfico que não diz nem explica nada em profundidade. É, ademais, uma obviedade, porque, superficialmente, todas as guerras são “regionais”. 

A Guerra, evidentemente, possuiu um contexto local. Obedeceu às disputas entre interesses dos Estados nacionais, controlados por facções das burguesias nativas. Contudo, esse jogo de interesses nunca esteve divorciado da dinâmica da economia e política mundiais. A questão, na minha interpretação, é definir em qual realidade e tendências mundiais esse contexto regional estava inserido. Devemos contextualizar o estudo do processo regional nessa totalidade.

Nesse sentido, uma primeira definição é que a economia e a política mundiais estavam na transição de um capitalismo de livre concorrência para um capitalismo monopólico e, portanto, mais agressivo. O mundo assistia o crescimento da concentração de capitais, do domínio do capital financeiro e do colonialismo europeu. Guerras de unificação nacional e expansionistas eram frequentes. Com o avanço da indústria e da tecnologia, os conflitos bélicos se tornavam mais letais. Esse é o contexto global, resumido por Eric Hobsbawn em sua afirmação de que “sob qualquer ponto de vista, os anos sessenta [do século 19] foram uma década de sangue”¹, da maior guerra latino-americana.

Sintetizando, o contexto global da Guerra contra o Paraguai é o das transformações e turbulências derivadas da passagem para a fase imperialista do capitalismo, em que uma das principais características é a expansão colonial – e semicolonial – das potências europeias.

Nesta compreensão, sem aderir à simplificação que defende que o Império britânico foi o único ou o principal responsável pela Guerra, a análise da influência desta potência na América Latina não deve ser omitida ou menosprezada. Não se trata de uma distorção ideológica, como vários trabalhos atuais apresentam – não podemos esquecer que o século 19 ficou conhecido como o “século inglês”.

O Reino Unido exercia uma dominação econômica e política semicolonial na América Latina: os novos Estados do subcontinente, surgidos do colonialismo ibérico, embora não retrocedessem formalmente ao grau de colônias, não resistiram ao estabelecimento de uma dependência financeira, comercial e diplomática de Londres. Isto não é ideologia, é fato. 

O Império do Brasil manteve uma dependência, herdada de Portugal, dos capitais e comércio britânicos, da mesma forma que a Argentina governada por Bartolomé Mitre e o Uruguai do caudilho Venancio Flores. Isto, evidentemente, não implica negar as contradições ou a existência de conflitos sérios entre o Reino Unido e esses Estados.

O Paraguai, por outro lado, não era nenhuma potência industrial², mas devido a uma série de motivos internos e à dinâmica do processo das independências na Bacia do Rio da Prata, consolidou um modelo de acumulação capitalista oposto ao laissez faire promovido pelo Reino Unido e assumido pelos demais governos da região. Os dois López, como seu antecessor Rodríguez de Francia, impulsionaram um modelo produtivo e fiscal protecionista, baseado em monopólios estatais. É evidente que esses governantes paraguaios, que impuseram um regime ditatorial, impulsionaram esse modelo estatista motivados por interesses próprios – mas o fato é que existia essa singularidade.

Nesse contexto, a Guerra não expressou o choque entre um modelo “industrialista” ou “protosocialista” paraguaio, como argumentam os historiadores revisionistas, e o modelo “capitalista” da Tríplice Aliança. Pelo contrário, ambos eram projetos capitalistas. O choque central foi entre dois modelos de acumulação capitalista: de um lado, o modelo estatista, protecionista e, em boa medida, independente politicamente; de outro, o modelo baseado no livre-comércio, dependente dos capitais e comércio europeus, principalmente britânicos. Por isso, o Reino Unido, embora não fosse o principal instigador nem a única causa do conflito, apoiou e financiou a Tríplice Aliança. Londres não tinha nenhum interesse na vitória militar do Paraguai. 

A escola historiográfica atualmente hegemônica nos meios acadêmicos, no afã de polemizar com o revisionismo simplificador e com o corpus teórico dos dependentistas, que afirmam que a primeira e última causa da Guerra foi a política britânica, acabam cerceando a análise e divorciando a região dessa totalidade que é a economia e política mundiais.

Assim sendo, as interpretações que tornam absoluto o peso da política britânica na conformação e dinâmica posterior da Tríplice Aliança são equivocadas, consistindo em uma simplificação que, entre outros problemas, atenua a responsabilidade direta dos governos que compuseram essa aliança militar. No entanto, é similarmente errôneo negar as evidências e concluir que o Reino Unido foi neutro.

Não só não foi neutro, como apoiou a Tríplice Aliança política e financeiramente. Isto está fartamente comprovado. Concluída a contenda, os capitalistas britânicos foram os principais beneficiários: as dívidas externas dos países envolvidos e os investimentos britânicos, especialmente no Brasil e na Argentina, aumentaram vertiginosamente. 

Em suma, se os revisionistas incorrem na simplificação da “tese imperialista”, muitos historiadores acadêmicos fazem o mesmo, negando a totalidade da economia-mundo e resistindo em definir os Estados de acordo com sua localização na divisão internacional do trabalho. A partir desse viés, concluem que o caráter da Guerra foi meramente “regional”, uma definição pobre. 

Opino que a análise dos fatos, do contexto e das consequências do conflito conduz a uma conclusão fundamental sobre a natureza da Guerra contra o Paraguai: uma guerra de conquista e de extermínio de uma nacionalidade oprimida. Essa é a natureza essencial deste fato histórico. 

Não se tratou de uma guerra justa ou progressiva por parte da Tríplice Aliança, como defende a historiografia tradicional, mas de uma guerra completamente reacionária. Já o Paraguai, independentemente do caráter ditatorial do regime da família López, travou uma guerra defensiva, justa, de libertação nacional que, em determinando ponto, derivou numa guerra total contra os invasores. 

 

Serviço de Comunicação Social: Quais eram os interesses da Tríplice Aliança em atacar o Paraguai?

Ronald León Núñez: A propaganda bélica dos Aliados assegurava que a guerra foi feita para levar a civilização liberal e o progresso ao bárbaro Paraguai.
O Tratado da Tríplice Aliança, assinado em maio de 1865, afirmava que a Guerra não era “contra o povo paraguaio, mas contra seu governo”. Assim, a invasão do Paraguai aparecia como uma campanha progressiva: ao realizá-la, na verdade, os aliados estavam fazendo um bem ao povo paraguaio, oprimido por um tirano. Mas isto rapidamente se revelou uma falácia.

O caráter ditatorial do regime dos López é inegável. Contudo, o extermínio de dois terços da população paraguaia, a destruição de sua economia, e a anexação de 40% do seu território – efeitos da Guerra – não autorizam a conclusão de que os Aliados eram portadores de “progresso” e, muito menos, que a guerra foi travada “unicamente” contra Solano López, com o propósito de “libertar” o povo paraguaio.

Na verdade, o Império do Brasil e a Argentina de Mitre não poderiam levar civilização e democracia para ninguém. O primeiro era uma monarquia escravagista e o segundo havia unificado o país a sangue e fogo, contra a resistência das províncias do Interior. A burguesia bonaerense, anos depois, cometeria novos crimes ao massacrar os povos originários no sul do país na chamada “Conquista do Deserto”, ocorrida entre 1878 e 1885. Ademais, a ditadura de López foi substituída por outra ditadura, o regime de ocupação militar das forças aliadas, que durou até 1879. 
Insisto: foi uma guerra de conquista, de anexação de territórios e invalidação da soberania paraguaia.

A própria imprensa em Buenos Aires, antes mesmo do início das hostilidades, defendia a necessidade de “destruir os monopólios” e liquidar a propriedade nacionalizada das terras; “explorar abertamente as riquezas” do Paraguai, principalmente por meio de investimentos estrangeiros; e, finalmente, impor o paradigmático livre-comércio, em benefício das burguesias aliadas, sócias menores do capital inglês.

Os governos da Tríplice Aliança, obviamente, possuíam interesses imediatos para empreender a Guerra, como a questão das fronteiras e a exploração de recursos. Na perspectiva do Império do Brasil, era fundamental garantir a livre navegação do rio Paraguai, que os López utilizavam frequentemente como carta de negociação para a definição das fronteiras, pois era essa a melhor rota para se comunicar com Mato Grosso. 

A burguesia pecuarista-comercial de Buenos Aires³, além do interesse no potencial dos negócios gerados pela guerra ou no pós-guerra, não hesitou em embarcar na destruição de um Estado que, eventualmente, poderia ser uma referência para os setores remanescentes do federalismo, que combatiam no Interior contra a capital portenha. De fato, entre 1864 e 1865, Solano López acreditava que era factível uma aliança militar com o caudilho federalista Justo José de Urquiza.

O Uruguai, por sua vez, entraria na Guerra após a derrota do governo do Partido Blanco, que pedira auxílio a Solano López diante do ataque dos colorados – apoiados por Buenos Aires e pelo Império do Brasil. A ascensão do caudilho Venancio Flores ao poder, em 20 de fevereiro de 1865, fez com que o Estado uruguaio passasse de aliado a inimigo do Paraguai.

Assim, existia uma dinâmica geopolítica própria. Contudo, como disse anteriormente, a razão de fundo diz respeito ao embate entre os projetos de livre-câmbio e o estatal-protecionista. Nesse estrito sentido, o Paraguai era uma anomalia na região. Buenos Aires e Rio de Janeiro viam com maus olhos um Estado nacional, mesmo que pequeno e débil, com aspiração de atuar com independência política, desenvolvendo sua economia sem a intervenção decisiva do capital estrangeiro. Os diplomatas britânicos na região, por sua vez, desprezavam o modelo econômico “fechado” do Paraguai pré-guerra. O problema era que esse modelo protecionista, em grande medida, oferecia obstáculos aos negócios das principais potências do Prata que, em última instância, veiculavam o comércio e os capitais europeus.

O próprio general Mitre, em um artigo escrito em 10 de dezembro de 1869 em meio a uma controvérsia pública, confessou os verdadeiros interesses dos Aliados e os motivos da Guerra:

“Os soldados aliados, e muito particularmente os argentinos, não foram ao Paraguai para derrubar uma tirania, embora por acidente este seja um dos fecundos resultados de sua vitória. Eles foram vingar uma ofensa gratuita, para assegurar sua paz interna e externa, tanto no presente como no futuro; reivindicar a livre navegação dos rios, reconquistar suas fronteiras de fato e de direito; fomos como argentinos, servindo aos interesses argentinos, e teríamos feito o mesmo se em vez de um governo monstruoso e tirânico como o de López, fôssemos insultados por um governo mais liberal e mais civilizado [...] Não se mata um povo a balas, não se incendeiam os seus lares, não se rega a sangue o seu território, dando por razão de tal guerra que uma tirania será derrubada, a despeito de seus próprios filhos que a sustentam ou apoiam”⁴.

Como diriam os juristas: a confissão dispensa a prova.

 

Serviço de Comunicação Social: Como terminou o conflito e quais foram suas consequências?

Ronald León Núñez: A Guerra terminou em 1° de março de 1870, com a morte de Solano López e o extermínio dos últimos soldados paraguaios. Assunção fora tomada em 1° de janeiro de 1869, mas a guerra continuou na forma de uma caçada a López, que recuou rumo ao nordeste do país. No prolongamento da Guerra, a postura do Imperador Pedro II foi decisiva. 

As consequências do conflito, para os quatro Estados envolvidos, foram profundas. De fato, não é possível entender a conformação final dos Estados nacionais no Cone Sul, suas fronteiras, sua identidade nacional, o papel de suas burguesias e exércitos, sem compreender cabalmente o ano de 1870.

Os exércitos profissionais de Brasil e Argentina, na prática, se forjaram na Guerra contra o Paraguai. Esse banho de sangue delimita os Estados nacionais e encerra, de fato, o dilatado processo das independências sul-americanas no século 19. 

A vitória militar dos Aliados teve muitas contradições na economia e na política nos anos posteriores. Tanto o Império escravagista do Brasil quanto a Argentina unificada sob os interesses de Buenos Aires saíram mais dependentes. O governo brasileiro gastou, no esforço de Guerra, um montante equivalente a onze vezes o orçamento nacional de 1864. O déficit levou a um aumento do endividamento, que já era importante. Entre 1865 e 1875, o Império havia contratado empréstimos por 15.724.413 de libras de casas bancárias inglesas⁵. 

Para o Paraguai, por outro lado, as consequências foram catastróficas, incomparáveis com os países vencedores.

Em menos de seis anos, o país perdeu entre 60 e 69% de sua população total⁶. Essa dimensão equivaleria a que, hoje, o Brasil perdesse cerca de 145 milhões de pessoas numa guerra. Foi uma catástrofe. Mais de 80% das mortes na Guerra coube ao Paraguai, fato que evidencia, também, a enorme desproporção militar deste confronto. 

O país não só perdeu dois terços de sua população, como foi destituído de 40% de seu território, anexados pelo Brasil e pela Argentina, de sua agricultura, sua pecuária e todos os avanços técnicos e as modernizações que o Estado nacional impulsionara desde 1852 (lembremos que o Paraguai havia inaugurado uma ferrovia, uma pequena fundição de ferro, estaleiros, telegrafo, etc.). O país foi ocupado por tropas brasileiras até 1876 e por tropas argentinas até 1879. Os vencedores, além disso, impuseram uma dívida de guerra impagável, estipulada pelo Tratado da Tríplice Aliança, que somente foi “perdoada” em 1942. As cidades foram saqueadas, as mulheres estupradas e houve tráfico de prisioneiros e crianças, que eram vendidos como escravos no Brasil ou repartidos como “criados” na Argentina. 

Leslie Bethell afirmou que, com exceção da Guerra da Crimeia (1854-1856), a Guerra contra o Paraguai foi o choque armado mais prolongado e devastador ocorrido em qualquer parte do mundo entre 1815 e 1914⁷. Esta sentença pode parecer exagerada, mas não é. Quanto ao grau de destruição e mortandade, não só de efetivos militares, mas também da população civil, a Guerra Guasu, como é chamada no Paraguai, evidenciou características mais típicas das guerras do século 20 que de muitos outros conflitos do século anterior.

No entanto, a corrente historiográfica hegemônica nas universidades brasileiras nega a existência de um genocídio. Dizem que utilizar esse termo seria anacrônico, posto que não existia no século 19. Ora, se o termo não existia, o crime sim. Isso é como dizer que o feminicídio só existe desde a segunda metade do século 20. Outros autores não negam o cataclismo demográfico paraguaio, mas argumentam que isso não deve ser chamado de genocídio porque isso pressuporia um plano deliberado e a comprovação de intencionalidade. Mas como é possível matar dois terços da população de um país sem intenção de matar? Acaso existiria, digamos, uma espécie de “extermínio culposo”, sem intenção de exterminar?

Eu reafirmo que se tratou de um genocídio. Os líderes da Tríplice Aliança sabiam o que estavam fazendo. Em termos proporcionais, não há um paralelo histórico à mortandade da população paraguaia entre 1864 e 1870, ao menos na chamada idade contemporânea. Isto não pode ser negado ou atenuado. Existe, com distintos graus e sob diversas formas, um negacionismo dos crimes da Tríplice Aliança contra o povo paraguaio e isso deve ser questionado. 

Não obstante, é evidente que a substância deste debate está na natureza da guerra. A discussão terminológica é mais uma de suas decorrências.

 

Serviço de Comunicação Social: Por fim, gostaria que nos contasse um pouco sobre a discussão abordada em seu último livro.

Ronald León Núñez: O livro foi publicado em 2019, originalmente em castelhano. O lançamento foi em Assunção, numa série de eventos e palestras para o público em geral e nos cursos de Ciências Sociais e História da Universidad Nacional de Asunción. Fiquei satisfeito com a recepção do público e a repercussão na imprensa local. Em setembro de 2022, o livro também foi lançado em Buenos Aires. Neste ano, publicamos a primeira edição em português, com prefácio do Prof. Dr. Rodrigo Ricupero, do departamento de História da USP. 

Acredito que parte do interesse nesta obra está relacionado ao debate explícito tanto com a escola historiográfica tradicional-conservadora, como com o chamado revisionismo, de direita ou de esquerda. Ademais, está a polêmica com as principais premissas e interpretações da historiografia acadêmica atual, que, na minha opinião, retoma sob outras formas os pilares argumentativos da velha historiografia tradicional, chauvinista, sobre a Guerra. Nesse sentido, fico honrado com opiniões como a do Prof. Dr. Lincoln Secco, que escreveu que “A Guerra contra o Paraguai em debate é um ponto de inflexão na historiografia e distribui as armas teóricas que a esquerda necessita para superar, na prática, o maior crime já cometido pelas burguesias independentes da América do Sul com apoio do imperialismo”⁸. 

Este livro é produto de cerca de 14 anos de estudo. Não oferece uma narração cronológica nem um reconto diplomático. Tampouco se trata de uma história militar. Coloca os fatos relevantes, mas não pretende ser um manual. Pelo contrário, está ordenado a partir de um esforço para debater e compreender problemas de fundo, econômico-político-sociais, que estão em discussão desde o final da Guerra. O enfoque metodológico, explicitado logo na introdução, é a concepção materialista da história. 

Assim, cada capítulo se organiza a partir de uma ou duas polêmicas, como: Qual foi o caráter ou sentido da colonização europeia? Qual o caráter das independências latino-americanas? Qual a natureza dos regimes paraguaios pós-independência, o regime de Rodríguez de Francia e dos López? No século 19, o Paraguai era uma nação oprimida ou uma “grande potência econômica e industrial”? Quais os interesses dos Estados que se envolveram na Guerra? Qual a natureza da Guerra? Qual foi o verdadeiro papel do Reino Unido? Qual a natureza do Império do Brasil e seu papel na região? Quais as consequências imediatas e aquelas que repercutem até hoje? 

A abordagem desses problemas se baseia, evidentemente, numa pesquisa em fontes primárias e na revisão de uma ampla bibliografia. Trata-se de um estudo sério, mas inacabado. É fundamental aprofundar muitos temas. O livro, deste modo, deve ser tomado como uma aproximação à matéria, que espero tenha utilidade para enriquecer os debates colocados. 

É muito importante investigar, ir aos arquivos, acompanhar a literatura especializada sobre este grande fato histórico, mas sempre pensando no presente.

A Guerra contra o Paraguai não é um tema morto, ancorado no passado. Tem extrema atualidade. Penso que, no Brasil, é fundamental entender que essa Guerra exacerbou uma relação de opressão nacional que já existia sobre o Paraguai, elevando a desigualdade entre ambos Estados. 

O Brasil trata o Paraguai como parte de seu quintal. Em março, o ministro Paulo Guedes falou que o Paraguai era mais um estado brasileiro. O estudo da Guerra é o marco necessário para compreender o caso do escandaloso Tratado da usina de Itaipu, assinado por duas ditaduras militares, onde o Brasil, na prática, se apropria da energia que corresponde ao Paraguai; o tema da penetração territorial dos latifundiários brasileiros no Paraguai para lucrar com o agronegócio; a questão das empresas brasileiras que migram para o Paraguai visando se beneficiar do regime de maquilas, onde produzem sem pagar impostos, explorando mão de obra e energia baratas, tudo com a conivência dos governos locais. 

Só o estudo rigoroso da história pode auxiliar a resolver problemas do presente. Quanto do preconceito racial e cultural contra o Paraguai e os paraguaios não tem sua raiz na propaganda de guerra do Império do Brasil, que apresentava esse povo como exemplo de selvageria? Cabe ou não exigir reparações materiais para o Paraguai? 

Em definitiva, é vital que os brasileiros se apropriem desta história. O povo explorado, a comunidade acadêmica e os movimentos sociais devem entender e assumir que essa Guerra é uma chaga na história do Brasil. 

Isso é fundamental para que os brasileiros conheçam melhor suas próprias raízes, o caráter da sua classe dominante e das forças armadas, bem como a relação do Brasil com os povos vizinhos e irmãos.

Ronald León Núñez é doutor em História Econômica pela FFLCH. Graduado em Sociologia pela Universidad Nacional de Asunción (Paraguai), tem como foco de pesquisa: Processo de independência latino-americana, principalmente do Paraguai e da Bacia do Prata; Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). É autor dos livros La Guerra contra la Triple Alianza en debate (Editora Lorca, São Paulo, 2019) e Revolución y Genocidio - El mal ejemplo de la independencia paraguaya y su destrucción, (Editora Arandurã, Asunción, 2011); traduzido para o português com o título Guerra do Paraguai (Editora Sundermann, São Paulo, 2011).

¹ HOBSBAWM, Eric. La era del capital [1848-1875]. 6. ed. 2. reimp. Buenos Aires: Crítica, 2010, p. 88.

² Pelo contrário, possuía uma economia exportadora de produtos primários 

³ Os principais provedores dos exércitos Aliados durante a Guerra foram empresários argentinos. 

⁴ MITRE, Bartolomé; GÓMEZ, Juan. Polémica de la Triple Alianza: correspondencia cambiada entre el Gral. Mitre y el Dr. Juan Carlos Gómez. La Plata: Imprenta La Mañana, 1897, pp. 4-5.

⁵ FIGUEIRA, Divalte. Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas FFLCH-USP: FAPESP, 2001, p. 29. 

⁶ WHIGHAM, Thomas; POTTHAST, Barbara. The Paraguayan Rosetta Stone: New Insights into the Demographics of the Paraguayan War, 1864-1870. Latin American Research Review, vol. 34, n.º 1, 1999.

⁷ BETHELL, Leslie. A Guerra do Paraguai: história e historiografia. In: MARQUES, Maria Eduarda (org.). Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 12.

⁸ Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-guerra-contra-o-paraguai-em-debate/