“Setores antagônicos dividiram a mesma rua” nas manifestações de junho de 2013
Há dez anos, em junho de 2013, as ruas brasileiras foram tomadas por manifestantes, motivados principalmente - mas não somente - pelo aumento da tarifa do transporte público. O movimento, que ficou conhecido como Jornadas de Junho, aconteceu durante o governo petista de Dilma Rousseff e foi um marco no cenário político do Brasil. Na época, diversos fatores conflitantes emergiam na política e a questão da tarifa apenas revelou os vários problemas que enfrentavam as metrópoles, como a precarização do mercado de trabalho e da remuneração e o mal-estar gerado pelo tempo e pelo dinheiro gastos por trabalhadores no transporte público. Todas essas razões, unidas à organização da luta do Movimento Passe Livre (MPL), levaram ao grande estopim que os brasileiros presenciaram há uma década.
As manifestações de junho de 2013 tiveram uma característica bastante peculiar: uniram cidadãos de diferentes posições políticas, tanto da esquerda quanto da direita. O transporte e a mobilidade, afinal, são questões universais, que conectam todos os trabalhadores. O sentimento de insatisfação que pairava no ar era generalizado.
O aumento das tarifas de ônibus foi barrado em todo o país e os manifestantes foram, aparentemente, vitoriosos. Porém, os protestos não acabaram, mostrando que o transporte era apenas uma dentre várias denúncias. As manifestações, então, passaram a se dividir e dar voz a discursos diversos: criticavam os altos gastos públicos com a Copa do Mundo de 2014, que seria realizada no Brasil, lutavam contra a repressão policial e condenavam a corrupção.
Os impactos desse movimento ainda são extremamente atuais. Depois de junho, esquerda e direita voltaram a se dividir por suas próprias causas. Enquanto a esquerda organizou mais greves, a direita viu nas Jornadas uma possibilidade de derrubar o PT, que governava o Brasil havia anos. Isso gerou repercussões que transformaram o país, como o impeachment de Dilma em 2016, a prisão de Lula em 2018 e até mesmo a eleição de Jair Bolsonaro.
De acordo com Joana Salém Vasconcelos, doutora em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, “Junho de 2013 ainda repercute. Seu lado construtivo em defesa de mais direitos deu origem ao fortalecimento de movimentos negros, feministas, LGBT+, de juventude. Uma cultura política de esquerda mais independente e horizontal se diversificou muitíssimo depois de junho e influenciou fortemente os partidos de esquerda, que precisaram se atualizar mais rápido. Mesmo assim, com as manobras de poder e dinheiro realizadas entre 2014 e 2018, a direita venceu: o bolsonarismo deslocou todo espectro político para extrema direita, essa régua andou muito contra a esquerda. Apesar da vitória de Lula em 2022, recuperar o orçamento público para direitos sociais e ambientais ainda vai custar muito esforço e mobilização”. Confira a entrevista completa:
Serviço de Comunicação Social: Qual foi o contexto político que levou às jornadas de junho de 2013?
Joana Salém Vasconcelos: O projeto político do PT continha um paradoxo importante que ajuda a explicar 2013. Os governos do partido tinham ampliado o acesso dos jovens trabalhadores às universidades (públicas e privadas) e prometido que a educação era a porta de entrada para o crescimento profissional e o bem-estar individual. Porém, a progressão das conquistas não era linear e se viu obstruída por limites do próprio governo. A proposta de expansão de direitos sociais foi limitada por um orçamento público contido pela Lei de Responsabilidade Fiscal e a qualidade dos empregos foi reduzida por um mercado de trabalho precário, que de certa forma estava sendo gerenciado pela política econômica do próprio governo.
É paradoxal porque as promessas do PT esbarraram no esgotamento interno do seu próprio paradigma. O mercado de trabalho brasileiro, acompanhando a tendência mundial e até inovando suas fronteiras, estava (e está) em plena crise da sociedade salarial rumo a situações cada vez mais incertas e vulneráveis: na época o setor emblemático da exploração da juventude era o telemarketing, hoje são os entregadores de aplicativo. Em suma: a empregabilidade e a remuneração não acompanharam a democratização da educação - que ainda assim era incipiente, porque mais de 70% dos jovens de 18 a 24 anos continuava fora do ensino superior em 2013 - e isso gerou um desequilíbrio entre expectativa e realidade.
Na economia, o Brasil de 2013 apresentava indicadores aparentemente bons porque o governo aplicou políticas anticíclicas bem sucedidas para frear o impacto da crise de 2008. O desemprego vinha em queda de 13% em 2003 a 4,6% em 2012; o salário mínimo tinha aumentado mais de 50% em termos reais na década anterior; e o consumo popular estava aquecido. Aliás, o consumo popular de carros individuais tinha crescido, o que afetava negativamente o cotidiano do transporte coletivo (outro paradoxo de 2013). Havia também um desgaste da classe política perante a população, um cansaço de material do bloco de poder gerenciado pelo que o filósofo Marcos Nobre chamou de “pemedebismo”, e uma crise de representatividade em curso. A faixa etária que mais ocupou as ruas em 2013, entre 20 e 30 anos, tinha praticamente iniciado sua cidadania política com o PT no poder e não conhecia outro governo.
Nenhuma explicação sobre junho de 2013 é simples. A situação era cheia de contradições e tensões difíceis de decifrar.
Serviço de Comunicação Social: Quais eram as reivindicações dessas manifestações?
Joana Salém Vasconcelos: O lugar do transporte público na vida social urbana é fundamental para explicar a reivindicação primordial de junho de 2013. A questão da mobilidade urbana foi o gatilho para uma despressurização geral, uma explosão de mal-estar com muitas camadas. Os estudiosos das cidades explicam que o tempo do “ir e vir”, considerado às vezes como um “entre lugar” na vida cotidiana, na verdade é absolutamente central para viabilizar os fundamentos da vida dos trabalhadores. Com a desindustrialização, a fragmentação do mundo do trabalho e o desmonte da estabilidade laboral, o transporte se tornou uma das poucas experiências que unifica diferentes tipos de trabalhadores com um problema comum. Em 2013, o transporte era gerador de mal-estar nas grandes cidades (ônibus cada vez mais lotados, 2 a 5 horas de deslocamento diário), e além de tudo ia ficar mais caro. A pedido de Dilma e Mantega, as tarifas das grandes cidades só aumentaram em junho, no meio do ano letivo, em vez de janeiro, como costumava acontecer. Isso permitiu ao MPL planejar melhor a luta da tarifa que faziam todos os anos e organizar uma base de estudantes secundaristas com calma. A vitalidade estudantil dos primeiros dias de junho e a subsequente repressão policial catalisou um sentimento generalizado de injustiça que estava enraizado no cotidiano popular. O transporte foi o ponto sensível e universal que deu origem à explosão. Mas ele só explica o começo.
Numa primeira etapa, a reivindicação era efetivamente os 20 centavos - até no máximo o passe livre. Só que a tarifa foi como a ponta do iceberg. Depois que a revolta popular foi vitoriosa e barrou o aumento do transporte em todo Brasil, as manifestações cresceram em vez de refluir - o que foi contra-intuitivo, porque depois de vitórias tão importantes como essa, estávamos habituados ao refluxo. “Não é só por 20 centavos”, passaram a dizer os cartazes.
Após a vitória em São Paulo e Rio, os protestos prosseguiram com reivindicações bifurcadas de dois tipos: por um lado, ampliação de direitos sociais, traduzido na ideia de “saúde e educação padrão Fifa” e “mais hospitais, menos estádios”, junto com uma revolta contra a repressão policial, que seguia dura e cada vez mais persecutória; e por outro lado, uma insatisfação difusa com o sistema político e a falta de representatividade das instituições misturada ao discurso contra a corrupção (traduzido no combate à PEC 37), que aglutinou pessoas cantando hino nacional, numa dinâmica de identidade traduzida pela frase “o gigante acordou” - seria o gigante do udenismo?
A agenda ideológica antissistema ainda estava em disputa em 2013. A esquerda sempre foi mais antissistema que a direita. Mas como o maior partido de centro-esquerda do Brasil estava no poder há uma década, as velhas e novas direitas junto com a grande imprensa tentaram se aproveitar desse sentimento e estimularam mais protestos para azedar a hegemonia do PT.
Depois de junho, quando setores antagônicos dividiram a mesma rua, há uma clara bifurcação: de um lado, um aumento expressivo do número de greves e do conflito distributivo no qual a esquerda não-petista atuava e apostava; e de outro, a lava jato, o lawfare, o ativismo político do MP, a Rede Globo, a Folha, o Estadão e as classes dominantes brasileiras estimulando o impeachment dia após dia até agosto de 2016. Junho de 2013 mostrou à direita brasileira que o PT não controlava mais as ruas, por isso na perspectiva dessas classes era preciso e possível derrubá-lo. Depois da vitória eleitoral petista de 2014, a direita decidiu burlar de vez as regras do jogo.
Serviço de Comunicação Social: Quais foram os impactos desse movimento na política e no cenário democrático brasileiro? Como esses impactos repercutem atualmente?
Joana Salém Vasconcelos: É importante lembrar da repressão: em junho de 2013 os ativistas autônomos de esquerda foram massacrados e aterrorizados por uma polícia de choque treinada para eventos internacionais. Vários inquéritos perseguiram manifestantes por meses a fio. Houve presos políticos e espionagem a grupos de esquerda. Todo o oposto do que ocorreu nas manifestações pró-impeachment de 2014 e 2015. Por que será?
Porque o conteúdo político que desencadeou as revoltas de 2013 era oposto ao de 2014 e 2015. Em 2013, o conflito distributivo tinha muito protagonismo e os jovens trabalhadores precários atuaram em massa. Em 2014 e 2015, havia o protagonismo da moral anticorrupção, da lava jato, da classe média branca que aplaudia operações policiais nas periferias.
Em 2013, uma insurgência pressionou o governo para a esquerda. Mas o PT optou por se meter ainda mais para dentro de um sistema político em crise, com respostas insuficientes e pactuadas com o centrão pela governabilidade. Em 2014 e 2015, a “insurgência” foi das classes dominantes e seus políticos, que conduziram manifestações de classe média com todos os seus aparatos econômicos e midiáticos. O PT não servia mais para estabilizar e pacificar a sociedade, então foi “demitido” do consórcio do poder pelo golpe de 2016 e quase banido de uma vitória eleitoral quase certa em 2018 com a prisão do Lula.
Em suma, depois de 2013, a esquerda antissistema foi apavorada pela repressão, a esquerda da ordem foi perseguida e golpeada pelos partidos de direita (centrão incluído), mas a direita tradicional foi incapaz de desenvolver hegemonia na sociedade. Tudo isso abriu uma avenida para Bolsonaro e seu discurso antissistema, autoritário e refundacional, típico do fascismo.
Nunca é demais lembrar que não há nada mais sistêmico do que a extrema direita antissistema. O curto circuito bolsonarista depois da derrota eleitoral de 2022 é essa ambivalência a 40 graus de febre, com extremistas que vão do golpismo delinquente e dos crimes de 8 de janeiro à defesa da moral, bons costumes, da lei e da ordem - tudo na mesma frase.
Junho de 2013 ainda repercute, sim. Seu lado construtivo em defesa de mais direitos deu origem ao fortalecimento de movimentos negros, feministas, LGBT+, de juventude. Uma cultura política de esquerda mais independente e horizontal se diversificou muitíssimo depois de junho e influenciou fortemente os partidos de esquerda, que precisaram se atualizar mais rápido. Mesmo assim, com as manobras de poder e dinheiro realizadas entre 2014 e 2018, a direita venceu: o bolsonarismo deslocou todo espectro político para extrema direita, essa régua andou muito contra a esquerda. Apesar da vitória de Lula em 2022, recuperar o orçamento público para direitos sociais e ambientais ainda vai custar muito esforço e mobilização.
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Joana Salém Vasconcelos é doutora em História Econômica pela FFLCH da USP, professora de História Contemporânea e História do Brasil Contemporâneo na Faculdade Cásper Líbero e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial da UFABC. Foi Visiting Scholar na Universidade da Califórnia, Irvine (UCI) em 2017-2018. É Coordinating Editor da revista Latin American Perspectives e Pesquisadora Associada do Centro de Estudios de Historia Agraria de América Latina. É autora do livro História Agrária da Revolução Cubana: Dilemas do Socialismo na Periferia e co-organizadora dos livros coletivos Cuba no Século XXI: Dilemas da Revolução, La Vía Chilena al Socialismo 50 Años Después: Historia y Memoria e Paulo Freire e a Educação Popular: Esperança em Tempos de Barbárie. Tem experiência em pesquisas de arquivo no Brasil, em Cuba, no Chile e nos EUA. Trabalha com América Latina nos séculos XX e XXI: história da reforma agrária e das revoluções; história econômica, social e política de Cuba e Chile; pensamento latino-americano e teoria da história; pensamento marxista, teoria da dependência e do desenvolvimento; história da pedagogia de Paulo Freire. Fez cursos na CEPAL, na Universidad Nacional de Córdoba (Argentina), no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e no Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO). Tem experiência como professora nos ensinos médio e superior; trabalhou com educação em direitos humanos para UNIFESP e com educação popular na Rede Emancipa; atuou no Instituto Vladimir Herzog com ensino de história da ditadura civil-militar brasileira, na equipe de coordenação do Portal Memórias da Ditadura, o maior acervo online sobre história da ditadura no Brasil.