Trabalho de ex-escravizados permitiu Guaratinguetá ser o único exportador de café no final do século 19

Pesquisa da FFLCH investigou como as novas relações de trabalho que surgiram entre fazendeiros e ex-escravizados contribuiram para o município manter a produção de café frente a crise de vendas e exportações

Por
Lívia Lemos
Data de Publicação

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Escravizados em terreiro de uma fazenda de café em 1882 (Foto: Wikimedia Commons)

A cafeicultura foi a principal atividade econômica do Brasil no século 19. Concentradas no Vale do Paraíba, as grandes fazendas mantiveram as demandas mundiais do grão até 1870, ano em que a produção entrou em declínio. Diferente das outras cidades, Guaratinguetá foi o único município da região que não entrou em crise graças a um conjunto de estratégias adotadas pelos fazendeiros. Entre elas estão as novas relações de trabalho que eles assumiram com os ex-escravizados, como o sistema de parceria e o trabalho sazonal.

Em sua pesquisa de mestrado, o historiador João Luís Santos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, investigou quais foram as implicações sociais e econômicas que as fazendas de café em Guaratinguetá sofreram com a abolição:

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[Imagem: Arquivo Pessoal]

 "A historiografia mostra que no Vale do Paraíba, mais especificamente na porção leste e no vale paulista, havia uma dinâmica de produção sustentada pela escravidão. Com a abolição, uma nova estruturação da rede fundiária se formou em Guaratinguetá para que a cidade continuasse produzindo".

 

Produção cafeeira no Brasil

No século 19, com o crescimento da demanda mundial pela bebida e a queda nas exportações de outros produtos que mantinham a economia brasileira, os agricultores enxergaram no café a oportunidade de ascender economicamente: "O principal concorrente do café brasileiro era a ilha de Java, mas na segunda metade do século 19, as fazendas de cafeicultura em Java entram em declínio por causa de pragas nas plantações. A partir daí, o Brasil lidera no mercado".

Caracterizadas pela monocultura, as fazendas de café foram desenvolvidas no Vale do Paraíba, entre Rio de Janeiro e São Paulo. O bom clima e a terra propícia para o plantio foram essenciais para que a região se destacasse. Mas o que realmente fez diferença foi a grande concentração de trabalho escravo na região, fundamental para manter a dinâmica das plantações, como ressalta o pesquisador: "É evidente que sem a exploração da mão de obra escravizada de africanos e seus descendentes a cafeicultura não teria sido possível".

Com a abolição da escravatura em 1888, a produção diminuiu o ritmo por carência de trabalhadores: "O auge da produção de café no Vale do Paraíba foi em 1850. Depois, você vê as cidades entrando em crise, como Bananal e Vale Fluminense, mas Guaratinguetá manteve o movimento ascendente".

O ano de maior produção de café em Guaratinguetá foi 1898. O pesquisador defende que um dos principais motivos foram as novas formas de trabalho que surgiram entre os fazendeiros e os ex-escravizados: "O município era o 6° com maior índice de escravizados. Com a abolição, observamos que houve uma mudança nas relações de trabalho para que a cafeicultura na cidade pudesse permanecer".

Novas relações de trabalho

De acordo com dados do Núcleo Urbano de Guaratinguetá, o número de trabalhadores livres no final do século 19 no município era de 11 mil pessoas. Apesar de terem sido libertos, muitos não tinham para onde ir ou no que trabalhar. "Temos indícios na historiografia de que, diferente do que aconteceu em outros lugares do Vale do Paraíba, houve uma tendência maior dessa população negra liberta permanecer em Guaratinguetá, onde haviam vivido a experiência da escravidão. Essas pessoas enfrentaram muita dificuldade, então para muitos, continuar talvez tenha sido a única opção”.

João explica que o sistema de parceria consistia na proposta do trabalhador livre permanecer na fazenda e, em troca, continuava trabalhando nas grandes plantações de café: "Além de ocupar uma parcela de terra, eles também podiam produzir suas hortas e ter criações". Apesar do fim da escravidão, o pesqusiador salienta que ainda houve uma linha de continuidade dessa experiência, uma vez que a abolição não trouxe nenhuma política reparatória para ajudar essas pessoas.

Outra forma de atrair a mão de obra dos trabalhadores pobres foi o trabalho sazonal: "Em épocas específicas como a seca, a cafeicultura demandava mais trabalho para a colheita e a carpa. Com isso, havia uma mobilização de trabalhadores pobres que saiam de outros lugares do Vale para trabalhar nas fazendas. A única diferença em relação ao sistema de parceria é que no trabalho sazonal havia uma remuneração".

Outros motivos

Além das novas relações de trabalho, outros fatores contribuíram para Guaratinguetá continuar exportando café. Como o Brasil era o único mercado que vendia  o produto e com a queda de produção das outras cidades, houve uma maior demanda pelo café em Guaratinguetá: "Eles passaram a ser o único município a fornecer para o mundo”.

Outro ponto fundamental é a construção da ferrovia no Vale do Paraíba entre os anos de 1870 e 1877: "As três novas estações passavam no território de Guaratinguetá. Se antes os produtores tinham que levar o café no lombo ou transportar na mula até o porto, agora eles tinham a ferrovia que facilitava o transporte da mercadoria. Então o custo que tinha com a mobilização de mão de obra foi diminuído".

Por último, Guaratinguetá preservou por mais tempo as áreas de plantio: "As técnicas de cultivo-condimentar que eles utilizavam permitiu que a cafeicultura tivesse uma resiliência um pouco maior do que as outras áreas do Vale do Paraíba".

Fim da produção em Guaratinguetá

Apesar do sucesso no volume de exportações, a produção de café no município entra em crise a partir de 1899 pelos mesmos motivos que antes eram supridos: a falta de mão de obra e as áreas preservadas. "A cafeicultura não se mantinha se não conseguisse incorporar novas terras e já não havia mais lugares para expandir essa produção. Ao mesmo tempo, Guaratinguetá não conseguia manter uma reposição de mão de obra".

A questão da crise dos preços do café que se instalou também levou ao fim do ciclo: "Na década de 1890, a produção brasileira de café era muito elevada, porém o mercado consumidor parou de crescer na mesma velocidade, especialmente os Estados Unidos. Houve uma oferta muito volumosa e os preços começaram a despencar, levando à crise dos preços do café".

Garças nos céus, cafezais na terra: resiliência e crise da cafeicultura em Guaratinguetá no pós-abolição foi defendida em junho de 2023 no âmbito do programa de pós-graduação em História Social e teve orientação do professor Carlos de Almeida Prado Bacellar.