Queda do Império Romano do Ocidente

Centro de uma rede de poder, o Império Romano do Ocidente teve seu declínio durante o período conhecido como “antiguidade tardia” (cerca de 250 d.C. a 800 d.C.). Alguns pesquisadores questionam o uso do termo “queda” e preferem “transformação"

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Thais Morimoto
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“A questão da queda do Império Romano é um assunto extremamente debatido”, diz o professor Rafael Scopacasa (Arte: Thais Morimoto/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Abordado em livros e em variadas obras cinematográficas, o Império Romano do Ocidente se consolidou como um grande império territorial tributário nos dois primeiros séculos da era cristã. 

“A cidade de Roma transformou-se no centro de uma rede de poder que controlava, direta e indiretamente, um território extremamente vasto, que chegou a se estender de Portugal ao Iraque e da Escócia ao Egito”, disse Rafael Scopacasa, professor de História Antiga, com ênfase em História de Roma, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP. 

A queda do império, no ano 476 d.C., é um assunto que ainda suscita divergências de opinião nos dias de hoje. Em entrevista ao Serviço de Comunicação Social da FFLCH, o professor Scopacasa, explica como o Império Romano do ocidente era caracterizado, quais motivos ocasionaram a sua queda e o impacto dela. O professor também explica que alguns pesquisadores do assunto questionam o uso do termo “queda” e preferem designar o acontecimento como “transformação” do Império Romano. 

Confira a entrevista completa com o professor: 

Serviço de Comunicação Social: Em termos políticos, como o Império Romano era caracterizado? 

Rafael Scopacasa: Nos dois primeiros séculos da era cristã, o Império Romano se consolidou como um grande império territorial tributário envolvendo a bacia do mar Mediterrâneo e várias regiões interioranas vizinhas. A cidade de Roma transformou-se no centro de uma rede de poder que controlava, direta e indiretamente, um território extremamente vasto, que chegou a se estender de Portugal ao Iraque e da Escócia ao Egito. Esse território estava subdividido em províncias, que eram administradas por governadores ou “procônsules” especialmente escolhidos em Roma: eles tinham mandatos temporários e eram assessorados por alguns outros oficiais imperiais. Porém, o grosso das responsabilidades administrativas ficava ao encargo das elites locais das províncias: esses eram habitantes locais que já se encontravam no poder antes da conquista romana, ou que foram colocados no poder pelos romanos após a conquista. Eles colaboravam com Roma cuidando de coisas como a coleta de impostos e a manutenção da ordem local e, em troca, recebiam favores, benefícios e o apoio de Roma que as mantinha no poder. Esse “toma lá, dá cá” teria contribuído bastante para a notável estabilidade e longevidade do Império Romano. Com o passar do tempo, muitas dessas elites locais provinciais ganharam a cidadania romana e entraram para o Senado, um dos principais órgãos do governo imperial. Os contingentes do exército Imperial Romano, ou “legiões”, patrulhavam as províncias e as zonas de fronteira, eventualmente atuando como força policial de repressão a revoltas populares e/ou contra o império. Havia no geral muitas diferenças entre as metades leste e oeste do Império Romano: as províncias orientais incluíam sociedades desde muito tempo urbanizadas e com culturas escritas milenares, tais como as comunidades gregas, fenícias e judaicas; ao passo que as províncias ocidentais (grosso modo a atual Europa ocidental e parte do norte da África) abrigavam sociedades não-urbanizadas, cuja cultura foi mais perceptivelmente afetada pela conquista romana, em vista, por exemplo, de fenômenos como a disseminação do latim e a construção de centros urbanos com edifícios monumentais e amenidades públicas em lugares como a atual França e Inglaterra. Os escravizados formavam parte considerável da força de trabalho que movimentava a economia do Império Romano, cujo dinamismo pode ser aferido em vista de uma ampla gama de vestígios tanto arqueológicos (por exemplo, a produção massificada e em série de recipientes de cerâmica de tipo “terra sigillata”) quanto ambientais (tais como as concentrações elevadas de partículas de cobre e chumbo detectadas nas geleiras da Groenlândia, que indicam graus elevados de poluição atmosférica na época do Império Romano, boa parte da qual provavelmente derivava da extração e fundição de metais em quantidades enormes).

Serviço de Comunicação Social: Quais foram os motivos que levaram à queda do Império Romano? Quais são as divergências existentes entre os profissionais sobre o acontecimento?

Rafael Scopacasa: A questão da queda do Império Romano é um assunto extremamente debatido. As mais variadas causas possíveis já foram aventadas, entre as quais: epidemias, mudanças climáticas, invasões externas, terremotos, crise econômica, descontentamento popular, enfraquecimento do governo imperial, a disseminação do cristianismo etc. Durante boa parte do século 20, predominou uma tese de que a raiz do problema teria sido o aumento excessivo da tributação a partir do século 3 d.C., que teria enfraquecido as bases produtivas e econômicas do império, tornando-o mais vulnerável a ataques de agressores vindos do além-fronteira, notadamente os chamados “bárbaros” no século 5 d.C. Por outro lado, mais recentemente chegou-se a questionar se seria mais correto pensar não em uma ‘queda’ de Roma, mas sim em uma ‘transformação’ do Império Romano durante o período conhecido como “antiguidade tardia” (cerca de 250-800 d.C.). Os defensores da tese da transformação argumentam que, na metade ocidental do império, o que aconteceu foi uma transição política gradual, pela qual uma nova classe dominante assumiu o controle das antigas províncias e deu origem aos chamados “reinos germânicos” ou “pós-romanos” - tal como o reino dos francos nas antigas províncias da Gália, ou o reino dos visigodos na península ibérica. Essa transição política, entretanto, não teria implicado a destruição ou o desaparecimento da cultura imperial romana, mas sim a sua apropriação, preservação e adaptação em diferentes níveis. Já os estudiosos mais céticos em relação à teoria da transformação enfatizam os contrastes entre a situação geral nos territórios do império antes e depois da desintegração da estrutura político-administrativa romana, sobretudo nas antigas províncias ocidentais: já se notou, por exemplo, como a criação dos reinos pós-romanos na Europa ocidental parece coincidir com uma fase de extrema contração econômica na região, com a redução de coisas como o artesanato especializado, o comércio a longa distância e a arquitetura em pedra, e o retorno de práticas mais simples como a fabricação de cerâmica modelada a mão. Ao mesmo tempo, novos estudos vêm se concentrando no papel de alterações climático-ambientais no desmantelamento do Império Romano em termos políticos e econômicos: o livro recente de Kyle Harper, intitulado “O destino de Roma”, faz uso de vestígios naturais e biológicos para investigar o impacto devastador de catástrofes socioecológicas concomitantes no início do século 6 d.C. – notadamente, um resfriamento climático conhecido hoje como a “pequena era do gelo da antiguidade tardia”, junto com a chamada “peste justiniana”, que pode ter sido uma das primeiras epidemias de peste bubônica de que se tem registro na História. As perspectivas são muitas, os problemas são complexos, e o debate continua.

Serviço de Comunicação Social: Qual foi o impacto da queda do Império Romano em termos mundiais? Como o acontecimento reflete nos dias de hoje? 

Rafael Scopacasa: Tanto quanto sabemos, o desaparecimento do Império Romano como uma organização territorial centralizada, politicamente unificada e tributária nos séculos 5-6 d.C. não provocou ondas de choque avassaladoras pelo mundo afora – mesmo porque o grau de conectividade e interdependência entre a Europa e o mundo ao redor parece ter sido extremamente menor naquela época, em comparação com a modernidade em diante. Um resultado potencialmente impactante em termos mundiais, entretanto, foi a sobrevivência parcial da antiga estrutura imperial nas velhas províncias orientais, que daquele ponto em diante passam a ser conhecidas como o “Império Bizantino” nos livros de história: essa formação política vai continuar mantendo contatos importantes com o Oriente Médio e além, de natureza tanto comercial quanto militar/bélica, por exemplo em conexão com o processo de expansão islâmica a partir do século 7 d.C. É importante ressaltar, nesse sentido, que a conquista árabe de boa parte do Império Bizantino garantiu a preservação do patrimônio histórico, arquitetônico e material que havia se desenvolvido nesses lugares desde a época da dominação romana – em um grau aparentemente mais expressivo do que em muitas das antigas províncias ocidentais da Europa. Quanto aos impactos possivelmente sentidos nas regiões mais distantes da bacia do Mediterrâneo, como a China Han e a África subsaariana: esses lugares, que abrigavam as suas próprias sociedades altamente complexas e suas próprias formações imperiais, não parecem ter sido diretamente afetados pelos desenvolvimentos políticos que marcaram o fim (ou transformação?) do Império Romano.
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Rafael Scopacasa é professor doutor de História Antiga na Universidade de São Paulo. Possui doutorado em História Antiga pela University of Exeter (2009), mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (2005) e graduação em História pela Universidade de São Paulo (2002). Tem experiência na área de História Antiga, com ênfase em História de Roma, atuando principalmente nos seguintes temas: Roma republicana (séculos VI-I a.C.), expansão romana, imperialismo romano, história ambiental do Mediterrâneo antigo, Roma e os povos itálicos, identidade romana e o "outro" de Roma, historiografia romana, arqueologia romana e itálica, identidade étnica, e arqueologia das práticas mortuárias. Foi bolsista da British School at Rome (2010-11) e é membro pesquisador do Department of Classics and Ancient History, University of Exeter.