Liderado pelo historiador e professor Pedro Puntoni, o projeto História e Memória Digital do Centro de Apoio à Pesquisa em História transforma fitas antigas em arquivos digitais, preservando décadas da trajetória da USP
Para cada um de nós, a memória é o que nos dá sentido. Fato que não é diferente para nossas instituições, especialmente, as que são dedicadas ao avanço do conhecimento sobre o mundo. É com esse espírito que uma iniciativa da USP está resgatando registros raros de sua história institucional gravados em fitas cassete, VHS e Betamax desde os anos 1970.
O projeto História e Memória Digital é coordenado pelo historiador e professor Pedro Puntoni no Centro de Apoio à Pesquisa em História (CAPH) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “O projeto nasceu em 2021, com o edital da USP para Projetos Integrados de Pesquisa em Áreas Estratégicas (Pipae), que permitiu ao CAPH liderar uma articulação com a Escola de Comunicações e Artes (ECA) e a TV USP”, explica Puntoni. O objetivo é preservar registros audiovisuais, como conferências, aulas magnas e cerimônias de titulação, ameaçados pela obsolescência e por más condições de armazenamento.

Para dar conta da digitalização, foi instalado um laboratório em parceria com a Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP, enquanto o CAPH passa por reformas estruturais. Sobre isso, o professor pontua: “Essa reforma é necessária para qualificar o espaço que abriga um material tão sensível. Agora, quanto à conversão para o digital, precisamos de equipamentos capazes de ler fitas magnetizadas e convertê-las em arquivos digitais”. Os equipamentos e o acervo ocupam um espaço considerável.
Contudo, o trabalho no local não é apenas técnico, mas também arquivístico. Grande parte envolve organização e catalogação: descrever o material em termos arquivísticos (por exemplo, saber qual é a procedência) e criar metadados para os objetos digitais. Para facilitar esse processo, o grupo passou a usar ferramentas específicas de inteligência artificial: “Usamos um programa de transcrição automática que gera o texto [a partir dos vídeos assistidos]. Corrigimos os equívocos e, em seguida, aplicamos uma IA para sintetizar o que foi dito”, esclarece.
O esforço, de acordo com Puntoni, já rendeu registros importantes. “Encontramos uma fita do centenário da morte de Friedrich Engels, com um seminário que homenageou Florestan Fernandes. O orador principal foi o presidente Lula, então ex-candidato derrotado em 1994, a aula é de 1996.”
A proposta é que tudo isso seja disponibilizado para o grande público. “Estruturamos o acervo e vamos oferecer o acesso on-line, permitindo que pesquisadores e curiosos explorem esse material. O meio digital possibilita esse acesso: não é o documento original, mas uma representação que pode ser melhor do que o próprio suporte analógico”, sumariza o coordenador da iniciativa.
Estudantes ao resgate
Na linha de frente do projeto, um grupo de estudantes assume tarefas que combinam arqueologia digital, organização arquivística e bastante criatividade. São estagiários e voluntários que atuam diretamente com fitas de vídeo e áudio, softwares de conversão e sistemas de catalogação, tudo aprendido na prática.
No laboratório, a rotina é dividida em diferentes etapas. Primeiro, as fitas são lidas e convertidas em arquivos digitais. Depois, os conteúdos são organizados em planilhas com códigos, títulos, nomes de participantes, palavras-chave e pessoas mencionadas.

“A ideia é criar um site para disponibilizar esse acervo. Mas ainda estamos em fase de catalogação, e também enfrentamos problemas com armazenamento, como quando o Google cancelou o Drive institucional da USP. Perdemos dois meses reorganizando o backup de quase dois terabytes”, relata Tainá Aparecida Ferreira, aluna do nono semestre do curso de História e bolsista do projeto desde 2023.
Além disso, o trabalho exige cuidados com a conservação dos materiais. Muitas fitas chegaram sujas ou danificadas, o que exigiu improviso e colaboração da equipe. “Nós também fazemos a limpeza das fitas. O Pedro, que também é monitor e tem formação técnica em informática, conseguiu um rebobinador de fitas que adaptamos para limpar os materiais com álcool isopropílico. Muitas fitas estavam mofadas ou sujas, então criamos um sistema improvisado com paninhos e microfilme. Algumas estavam tão comprometidas que perdemos o conteúdo”, explica David Brian Pereira, integrante da equipe e estudante do sétimo semestre do curso de História.
A formação técnica da equipe se deu, majoritariamente, na prática. “A gente aprendeu tudo na prática. O CAPH ofereceu um curso sobre conservação de documentos, mais voltado para papel e fotografia, com algumas menções a fitas magnéticas”, lembra ela. David Brian completa: “A maior parte do que a gente aprendeu foi fuçando mesmo”.

E os desafios não param na digitalização. “O principal é a conservação das fitas e a falta de equipamentos. Muitos dos leitores são antigos e difíceis de encontrar. Como a USP não pode comprar equipamentos usados, ficamos dependendo de doações ou empréstimos”, aponta a estagiária, acrescentando que “às vezes, os equipamentos engasgam e danificam as fitas. A gente perdeu algumas por causa disso”.
Mesmo com as dificuldades, o acervo revela preciosidades, registros de legítimas “celebridades” do mundo acadêmico. “Vídeos de greves antigas, simpósios, obras no vão da FFLCH, cerimônias de titulação. Temos materiais com professores eméritos, como Emília Viotti, Milton Santos, Aziz Ab’Saber e Florestan Fernandes. É uma forma de conhecer a história da USP por dentro”, conta ela.
Além de David e Tainá, o projeto conta ainda com a participação dos estagiários Pedro César Antunes de Amigo, Mylena Sabrine de Oliveira Pinto e Olga Beatriz Steffen Cruz. Também integram a equipe os bolsistas do Programa Unificado de Bolsas (PUB) Ana Carolina Muniz dos Santos e Leonardo de Lima Faria, assim como os voluntários Nicolas Kahli Dourado Maciel e Otavio Silva de Oliveira.


Um legado para a USP e além
Com centenas de documentos já recuperados e outros tantos em fase de tratamento, o projeto, neste ano, entra em sua etapa mais ambiciosa: estruturar um acervo on-line aberto ao público. A meta é concluir a digitalização até o final de 2025, quando se encerram os contratos da atual equipe. Para os integrantes, no entanto, o que está sendo preservado vai muito além de registros históricos.
“Eu ingressei na faculdade e logo entrei no projeto, e agora estou saindo da graduação ainda nele. Então, ele moldou minha visão como historiador, principalmente no que diz respeito à importância dos arquivos. Não existe historiador sem arquivo”, pontua Pedro César Amigo, monitor desde os primeiros ciclos da iniciativa, considerado informalmente pela equipe como um dos líderes da iniciativa.
Ao lidar com fitas deterioradas e equipamentos antigos, o estudante revela ter compreendido o valor da preservação. “A partir do nosso esforço [consertando equipamentos, improvisando técnicas] conseguimos salvar muito desse material. E com isso também aprendemos o valor da preservação. Ver o estado de degradação do que havia ali nos fez entender como estávamos deixando algo tão valioso se perder.”

E, para o futuro historiador, a relação com o projeto vai além de uma simples função técnica. “É a minha vida acadêmica. E eu não tenho intenção de deixar ele para trás. Esse projeto representa praticamente toda a minha trajetória na USP”, sumariza.
Considerando tudo isso, de acordo com o professor Puntoni, o projeto remete à importância da preservação, do acesso e da formação de todos aqueles que trabalham com esse tipo de material: “É uma oportunidade incrível de lidar com documentação e arquivos, além de aplicar novas tecnologias tanto na conversão para o digital quanto na catalogação e organização de material”.
Na opinião dele, “preservar a memória exige torná-la acessível; não basta mantê-la fechada em uma caixa. A memória precisa ser ativada, pesquisada, conhecida e vivenciada para ser verdadeiramente preservada”, finaliza.

Mais informações no site do CAPH em https://caph.fflch.usp.br e pelo Instagram @capfflch.
Escrito por Denis Pacheco.
Texto original: https://jornal.usp.br/universidade/como-estudantes-da-usp-estao-resgatando-parte-do-acervo-historico-da-universidade/