Pesquisadora da FFLCH monta dicionário que explica significado e origens de sobrenomes

Pesquisa mostra de que forma sobrenomes acompanham histórias e contextos sociais e como podem ser uma ferramenta de pertencimento e estudo

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Astral Souto
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Mapa do Brasil com alguns sobrenom sobre o contorno do país.
Imagem: Vecteezy / Montagem: Renan Braz

Você sabe o significado do seu sobrenome? E a origem? Os sobrenomes podem vir de diferentes lugares e serem criados das formas mais diferentes e subjetivas. Letícia Santos Rodrigues, doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, defendeu em sua tese, intitulada Caminhos da Imigração: sobrenomes que contam história, os aspectos sociológicos, históricos, psicológicos e morfológicos dos sobrenomes, sobretudo os portugueses.

Letícia analisou documentos do Museu da Imigração da cidade de São Paulo, antiga hospedaria de imigrantes na abertura dos portos brasileiros, em 1808; do acervo da Universidade de Coimbra; nomes de listas da Fuvest; e outros três dicionários. A pesquisadora criou um Dicionário Onomástico (estudo dos nomes próprios) Etimológico (estudo da origem das palavras). Ela classificou os sobrenomes pesquisados em relação a suas origens e significados, como os que tinham vinculação com características físicas, psicológicas e comportamentais, aspectos profissionais e títulos, aspectos regionais, de vegetação, entre outros.

O surgimento desses sobrenomes aconteceu para diferenciar pessoas com nomes iguais. No começo, o mais comum era usar o nome do pai, explica a pesquisadora: “Imagine que em contextos menores havia um João, outro João e mais outro João. Como é que diferencio tantos Joãos? João Antunes, por quê? Porque o pai dele é Antônio. Outro João é filho de Rodrigo, então é João Rodrigues. E um terceiro João é filho de Domingo, então é João Domingues”.

Porém, essa configuração não durou muito tempo. Ao passo que a organização social de Portugal crescia em vilas e comunidades, os sobrenomes se repetiam, causando homônimos que criavam confusões na identificação de pessoas daquela sociedade. Assim, houve a necessidade de acrescentar mais um item aos nomes. Esse elemento, que não era oficial, era escolhido com base em atributos subjetivos, Letícia exemplifica: “Havia um João que era ferreiro ou que o pai era ferreiro, portanto João Ferreiro. Havia outro João que trabalhava com machado, então era João Machado. Outro tinha uma deficiência na mão e ele não tinha os dedos, João Batata, porque a mão lembrava uma batata. E aí começa a perder o freio. João Salgado, é a pessoa que tinha sal, era uma pessoa interessante”.

Branco, louro, delgado, manco, furtado (filho não legítimo), nonato (nascido de cesárea), todas essas características se tornaram apelidos que foram adicionados aos nomes. No entanto, quando foi preciso que os nomes de fato se organizassem e que os pais registrassem seus filhos com nomes fixos hereditários, esses apelidos específicos poderiam não fazer mais sentido. Se o pai tem o sobrenome de louro, mas o filho nasce moreno, o sobrenome não se sustenta mais pela aparência física. Então, o significado se perde, sobrando apenas um sobrenome que não tem relação com a pessoa que o utiliza: “Quando isso passa a representar famílias, perde-se um pouco essa motivação semântica e permanece como algo mais fixo mesmo. Como temos nomes hoje, por exemplo, Brisa. Sabemos o que é uma brisa? Mas se eu falar de uma pessoa: ‘Brisa me disse tudo’. Você já tem um referente que é uma pessoa que se chama Brisa”.

Os contextos sociais também faziam diferença na escolha e na mudança de sobrenomes. Na época em que eles ainda não eram fixos, mulheres viúvas os flexionavam para a forma feminina (Cardoso, Cardosa) para mostrar que elas não iriam se casar novamente. Isso também acontecia com mulheres ligadas à vida religiosa e mulheres que socialmente eram consideradas fortes líderes familiares e iriam criar uma linhagem feminina.

Não existiam sobrenomes que remetessem a características e profissões comumente femininas. Eles eram sempre herdados pelo pai ou marido e muitas vezes eram apagados dos nomes das mulheres. A pesquisadora conta que em suas investigações pelos documentos de imigração brasileira muitas fichas de mulheres não vinham acompanhadas de seus sobrenomes, nem descrição de suas ocupações e outras informações que continham em fichas masculinas. Dessa forma, apagando suas histórias e as resumindo aos homens da família.

Letícia conta que um dos desafios de estudar onomástica no meio acadêmico é o desinteresse que existe pela área de estudos, além de uma carência de material publicado para examinar. Isso se torna um obstáculo para a criação de novas pesquisas sobre o tema. Com a elaboração do dicionário, Letícia busca produzir um material de consulta para quem busca informações etimológicas, linguísticas e históricas dos sobrenomes, assim incentivando mais trabalhos na área. O dicionário ainda está em desenvolvimento. Já foram investigados 50.000 sobrenomes, e destes, foram considerados 1707. Isso aconteceu porque existiam variações gráficas (Sousa, Souza; Batista, Baptista) e de gênero, número e grau (Ferreiro, Ferreira; Negro, Negrinho, Negrão; Martin, Martins) dos sobrenomes.

Fora do meio acadêmico, a pesquisa se propõe a apresentar o tema para o público leigo e aproximá-lo de termos acadêmicos muito presentes na tese e que são de fácil entendimento. Além do mais, o tema da pesquisa é universal, uma vez que perpassa pelo ortônimo (nome civil completo) de todos.