Lorena, Lia e Ana Clara são três universitárias que moram em um pensionato de freiras na década de 1970 e têm suas trajetórias entrelaçadas com acontecimentos históricos marcantes da vida político-social brasileira
Sentei na cama. Era cedo para tomar banho. Tombei para trás, abracei o travesseiro e pensei em M.N., a melhor coisa do mundo não é beber água de coco verde e depois mijar no mar, o tio da Lião disse isso mas ele não sabe, a melhor coisa mesmo é ficar imaginando o que M.N. vai dizer e fazer quando cair meu último véu. O último véu! escreveria Lião, ela fica sublime quando escreve, começou o romance dizendo que em dezembro a cidade cheira a pêssego. Imagine, pêssego.
Dezembro é tempo de pêssego, está certo, às vezes a gente encontra as carroças de frutas nas esquinas com o cheiro de pomar em redor mas concluir daí que a cidade inteira fica perfumada, já é sublimar demais…
São as divagações da delicada Lorena, de família paulista quatrocentona, que abrem o romance As Meninas, de Lygia Fagundes Telles. Este parágrafo conduz a outros em que os leitores vestibulandos, sensíveis e atentos, vão poder mergulhar e descobrir um dos mais importantes e ousados livros da autora.
“Lorena e as amigas, Lia e Ana Clara, são as três universitárias que dão nome ao livro. As Meninas foi lançado pela escritora paulistana em 1973. Tem como cenário a cidade de São Paulo, no período mais repressivo da ditadura civil-militar brasileira”, explica Fernando Breda, doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “As meninas residem em um pensionato de freiras, que está praticamente vazio. No período em que transcorre o romance, há uma greve na universidade, e a maioria dos estudantes voltaram para suas cidades, intensificando a presença das três personagens. Em dimensão mais específica: a história acontece em um intervalo de poucos dias de uma greve estudantil. É difícil precisar quanto tempo, mas não chega a semanas.”
A narrativa na voz e sonhos das personagens
A escritora deixa a narrativa por conta das três personagens. Tem momentos em que os pensamentos e os sonhos fluem. Outras vezes, são as conversas. Essa narrativa polifônica pode confundir o leitor, mas Fernando Breda, que, além de professor universitário, também lecionou em cursinho pré-vestibular, acredita na dinâmica e percepção dos vestibulandos.
Breda observa: “A partir disso, acredito que fica mais fácil entender o romance. O vestibulando tenderá a ter menos dificuldades para entender o que se passa nessas recorrentes transições vertiginosas do fluxo narrativo de uma voz à outra. Ou seja, a dificuldade de compreensão decorrente de não se saber quem narra, tende a diminuir à medida que se sabe que essas vozes são, quase sempre, de uma dessas três personagens”.
O pesquisador lembra: “Os estudantes podem pensar a história a partir de uma imagem que está no livro. Ou seja, uma pirâmide ou um triângulo, se o leitor preferir, no qual estão situadas em cada vértice as três personagens que estruturam o andamento do enredo: Lia, Ana e Lorena”. Breda assinala que essa é uma narrativa em que o enredo tem menos peso dramático do que os pensamentos. “O que eu quero dizer com isso é que o livro tem um enredo relativamente enxuto, porém apresenta um grau de complexidade que se materializa mais nos pensamentos das personagens do que nas suas ações, propriamente, ou em grandes viradas factuais, por exemplo.”
As três protagonistas, segundo o professor, dão materialidade literária a diferentes modos de se lidar com o contexto da época, seja em relação aos costumes, seja em relação à vida política em sentido mais estrito. “Então, o leitor tem, em Lia de Melo Schultz, a figura de uma militante comunista, filha de um alemão ex-nazista e de uma brasileira. Em Lorena, uma representante da decadente família Vaz Leme, condição que a torna mais rica do que as demais, mas ainda assim nostálgica do passado e às voltas com um trauma familiar – uma espécie de sonhadora ingênua e abastada. Por fim, a bela Ana Clara Conceição, filha de mãe solo, pobre, com um uso problemático de drogas e em busca de ascensão social.”
Estrutura da obra dividida em 12 capítulos
Um aspecto importante que Fernando Breda comenta com os estudantes é sobre a estrutura da obra. “Ela é dividida em 12 capítulos, que acabam tendo certa centralidade em torno da vida de uma das três personagens principais, entre as quais se destaca a Lorena, que figura como uma espécie de ligação entre as personagens, que só se juntam efetivamente no final do romance. De modo geral, são narrados por meio da oscilação das vozes em primeira pessoa de cada uma das três meninas. Têm, ainda, uma misteriosa voz de um narrador externo ao romance e em terceira pessoa.”
Como o livro lançado nos anos de chumbo (o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil) conseguiu passar pela censura é a dúvida que fica no ar. Será que a narrativa polifônica e ousada de Lygia Fagundes Telles foi uma estratégia para passar pela censura da época? Ou seja, como não estava à altura da imaginação do censor, será que ele simplesmente deixou passar o romance com a história de Lia de Melo Schultz, da esquerda armada contra a ditadura e com o namorado na prisão?
“Sobre a questão da censura, é realmente difícil dizer… Às vezes, obras bastante explícitas em suas críticas ao regime passavam pela censura, e obras cuja relação de criticidade com o regime era, por vezes, simplesmente inexistente, acabavam sendo vetadas”, destaca o pesquisador e professor. “No entanto, essa é uma pergunta que realmente instiga as pessoas que leem o romance.”
Breda completa: “Nesse sentido, acho que a anedota que a autora conta a respeito talvez possa ser uma justificativa bastante razoável. Segundo ela, o livro, apesar de colocar na boca de Lia um panfleto recebido pela autora enquanto escrevia o livro e de descrever as torturas que um preso político sofreu nos porões do DOI-Codi, ainda assim, não teria sido censurado, porque o censor da época não avançou muito na leitura do romance, considerando-o chato. Sorte a nossa!
Lorena, Lia e Ana Clara nos dias de hoje
As três personagens – Lorena, Lia e Ana Clara – ainda retratam a realidade dos jovens de hoje, especialmente os que se preparam para o vestibular? Essa é a pergunta que está no ar. Fernando Breda, que conhece bem os jovens leitores, responde: “Eu diria que consigo vislumbrar uma certa coincidência sentimental entre esses possíveis leitores-vestibulandos e as personagens principais do romance. Penso que a idade média de um vestibulando não está tão distante da idade das personagens retratadas, imagino que muito do que elas estão vivendo ali em termos de descobertas, como o contato com o mundo da política, das drogas, da sexualidade e outras coisas associadas à vida adulta, possa ser algo que aproxima os vestibulandos das personagens”.
Por outro lado, Breda afirma que essa proximidade de idade tende a contrastar com a própria percepção do que é ser jovem no Brasil de hoje e daquela época, sobretudo em relação aos valores morais e aos costumes. “É sempre um risco, para não dizer um caminho certeiro ao erro, considerar que nossa moralidade contemporânea é, em si, superior ao que se viveu no passado.”
O pesquisador reflete e fica à vontade com os vestibulandos para orientar: “Nesse sentido, num momento histórico marcado por novas, e necessárias, discussões sobre relações de gênero, raça e classe, bem como por um certo conservadorismo emergente e pela ascensão de figuras autoritárias na vida pública, penso que a comparação da vida presente com o que já foi vivido em outros momentos similares, possa, sim, tornar a leitura desse romance ainda mais oportuna. Independente de se realizar ou não a prova da Fuvest”.
E observa: “Então, eu diria que é também uma oportunidade dos jovens leitores observarem o romance como um espelho quebrado, no qual podem exercitar um jogo de identificação e desidentificação com as vidas das personagens”.
Momentos de prazer-estudo e leitura do livro
Em relação à importância do livro no contexto da Fuvest, Breda assinala que o romance pode vir a cumprir dois papéis fundamentais. “Primeiro, e mais importante, é permitir ao vestibulando ter um momento de prazer ao mesmo tempo em que se estuda para a prova. Digamos que se possa, assim, matar dois coelhos com uma cajadada só. Ao mesmo tempo que curte a leitura do romance, empreende-se parte do estudo necessário à realização da prova.”
O pesquisador assinala outro ponto que considera fundamental: “A leitura desse romance atentando a seus detalhes, pormenores, contexto etc. pode contribuir para uma formação mais sólida de quem o lê. Digo isso não apenas no que diz respeito a um repertório literário propriamente dito, o que é válido, mas também a um repertório histórico-cultural mais amplo”. Justifica: “Muito do que é vivido no enredo do romance diz respeito a acontecimentos históricos fundamentais da vida político-social brasileira. Questões relativas a aspectos culturais da sociedade ocidental como um todo são tratadas ali como pontos da curva dramático-narrativa das personagens: psicanálise, política, marxismo, religião, consolidação do uso de drogas na cultura pop etc.”
Dessa forma, Breda conclui: “As questões da prova, não necessariamente ligadas à área de literatura, também serão contempladas nesses momentos de prazer-estudo e leitura do livro”.
Lygia Fagundes Telles, segundo o olhar de Antonio Candido
“A paulistana Lygia Fagundes Telles é uma das notáveis prosadoras da literatura brasileira. Os vários prêmios que recebeu atestam esse reconhecimento de acadêmicos, críticos e leitores como uma das escritoras mais importantes do século 20”, observa Fernando Breda, apresentando a autora aos vestibulandos. Em 1941, a autora entrou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. Foi uma das seis estudantes sob o desafio de uma classe de cem homens. Mas lá conheceu os amigos Mário de Andrade, Oswald de Andrade e os cônjuges Gofredo Telles Júnior e Paulo Emílio Salles Gomes.
O pesquisador lembra o que disse Antonio Candido de Mello e Souza, crítico literário e mestre da Universidade de São Paulo: “Em uma carta escrita a Lygia Fagundes Telles, em 2005, por ocasião do Prêmio Camões, o professor comenta com certo prazer ‘ter sido um dos primeiros a discernir, na principiante dos anos de 1946, a grande escritora que despontava’. Antonio Candido continua: ‘Refiro-me ao concurso de contos com pseudônimo entre estudantes de Direito, do qual fui juiz, não lembro se único ou com outros. O que lembro é que destaquei um que vinha com sobrecapa de papel almaço, ilustrado por três velas desenhadas a lápis vermelho, Os Mortos, e o indiquei para o prêmio como sendo de longe o melhor’”.
Fernando Breda continua falando aos vestibulandos: “Só por aí, já dá para perceber a grande figura da literatura brasileira começando a despontar. Mas eu diria, também, que é importante que os estudantes tenham em mente que Lygia Fagundes Telles está para além do cenário nacional”.
O Prêmio Camões, que recebeu em 2005, demonstra sua importância em nível internacional, uma vez que é a maior honraria literária entre autores de língua portuguesa – e aí vai Brasil, Portugal, Angola, Moçambique… Mas, além da língua portuguesa, a obra da escritora brasileira tem sido lançada em diversos países. O romance As Meninas foi traduzido de 1978 a 2024 na Argentina, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, França, Itália, Sérvia, Japão e Eslováquia.
O livro As Meninas também foi adaptado para o cinema em 1995. Sob a direção de Emiliano Ribeiro, teve a interpretação de Adriana Esteves, Drica Moraes e Cláudia Liz, com um roteiro que contou com a admiração da escritora Lygia Fagundes Telles (SP, 19 de abril de 1918 – SP, 3 de abril de 2022).
Texto original de Leila Kiyomura: https://jornal.usp.br/universidade/livros-da-fuvest-2026-em-as-meninas-lygia-fagundes-telles-desafia-os-anos-de-chumbo-com-ousadia-literaria/