Henrique Felippe da Costa, mais conhecido como Henricão, foi o primeiro Rei Momo negro do carnaval paulistano. Ele militou nas artes e na música de modo discreto, como mostra estudo realizado na Antropologia da USP
O primeiro Rei Momo negro do carnaval paulistano, Henrique Felippe da Costa, o Henricão, teve 30 anos de sua trajetória de vida analisados em uma pesquisa de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. O estudo permite desvendar faces de um Brasil em modernização, principalmente ao se analisar as áreas em que o artista popular Henricão atuou, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, período analisado no estudo. Natural da cidade de Itapira, no interior de São Paulo, o artista percorreu caminhos desde o samba e futebol até o teatro, entre São Paulo e Rio de Janeiro.
No estudo Quadros e coleções de um artista em trânsito: Henricão e as faces do Brasil moderno nas décadas de 1930, 1940 e 1950, que teve a orientação da professora Fernanda Arêas Peixoto, o antropólogo Bruno Ribeiro da Silva Pereira traz à luz aspectos da vida de Henricão que teve boa parte de sua trajetória marcada pela coadjuvância.
Um dos poucos momentos de maior visibilidade do artista foi a eleição dele para Rei Momo do carnaval paulistano em 1984, sendo o primeiro negro a ser escolhido para reinar na festa
Bruno Ribeiro
O interesse do antropólogo pela cultura popular surgiu quando ele teve acesso a temáticas que lhe permitiram relacionar o samba com a cidade. Já no mestrado em Antropologia, ele analisou a relação entre as reformas urbanas na administração de Prestes Maia, nos anos 1930 e 1940, com as práticas das escolas de samba paulistanas. Para tanto, recolheu notícias de jornais e recorreu a outras pesquisas sobre o tema.
Depois de concluído seu estudo de mestrado, o antropólogo prosseguiu no mesmo caminho buscando acervos e pesquisas. Foi quando ele se deparou com um vídeo de Henrique Felippe da Costa exibido no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo. “Pude ver depoimentos de fundadores de escolas de samba e, entre os sambistas, lá estava o Henricão”, conta Bruno. A entrevista de Henricão, veiculada no MIS, foi entremeada com um show que o artista participou na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo. “Segundo os registros, as gravações do show e da entrevista são do ano de 1981”, calcula o pesquisador.
Uma história da população negra
Henricão era filho de pais escravizados. Nasceu no ano de 1908, em Itapira, no interior do estado de São Paulo. “Os trinta anos da trajetória de Henricão que analisei no estudo nos ajudam a entender o Brasil e parte da trajetória da população negra paulistana. “Quando se pensa, por exemplo, nas origens do samba de São Paulo existe uma associação quase que imediata com a cidade de Pirapora do Bom Jesus, considerada o berço do samba paulistano”, lembra Bruno.
Mas ele destaca que Itapira também era um “espaço” rico de manifestações culturais negras. Segundo ele, Henricão e toda a família participavam de atividades da comunidade de São Benedito, que acontecia anualmente em 13 de maio. “Havia também naquela cidade práticas do samba muito semelhantes a Pirapora. Trata-se de um local em que havia grande sociabilidade da população negra. Mas, com o passar dos anos, Itapira acabou sendo esquecida em sua relação com o samba”, conta Bruno.
Henricão tinha dois irmãos mais velhos, José e João, que sempre estiveram, de alguma forma, ao lado dele em sua trajetória. Entre 1924 e 1926, ele sai de Itapira para jogar futebol em cidades da região: Amparo, Mococa e Rio Claro. “Com seus quase dois metros de altura, sempre atuando como goleiro, chegou a dizer naquela entrevista que recebeu um convite para jogar no Corinthians”, conta Bruno. “Contudo, eu não consegui registros de que, de fato, isso tenha ocorrido”, explica.
Além do futebol, Henricão também foi cantor de samba e outros gêneros, como bolero e baião. “Passou ainda a atuar no teatro”, como destaca Bruno. E tudo isso, como conta ele conta, era possível graças à ajuda dos irmãos.
Chegando em São Paulo, já no final da década de 1920, junto com o irmão José, Henricão vai residir na região da Lapa. “Ele já era então funcionário do Banco do Brasil, o que lhe permitiu se tornar o sustentador de toda a sua família”, ressalta o antropólogo. Junto a seu irmão João, que tinha mais intimidade com as artes, formaram um grupo teatral cujo objetivo era oferecer lazer à população negra de parte da cidade. Foi quando atuou como ator.
Além dessas atividades, veio o interesse pela boemia e pelos bailes que eram promovidos pelas agremiações de samba que eram associadas às escolas. “Em São Paulo havia clubes ligados à Vai-Vai e ao Camisa Verde e Branco, por exemplo”, lembra Bruno. “Foi aí que ele teve contato com fundadores das escolas de samba. Começou a caminhar entre a música, o futebol e as artes, de maneira geral. Ele participou, inclusive, da fundação da Vai-Vai, no final da década de 1920”, conta o pesquisador. Já na década seguinte, 1930, Henricão começa a se apresentar em emissoras de rádio.
“Ele começa cantando músicas do universo da cidade, com a presença negra e do samba. Contudo, a hegemonia era da música caipira, e ele passa a interpretar canções com temas ligados ao modo sertanejo”, descreve Bruno.
Reinvenções
Para o pesquisador, a trajetória de Henricão individual e marcada por deslocamentos, permite observar que o artista foi se “reinventando” e acabou por revelar uma série de cruzamentos entre as relações raciais, linguagens artísticas e cidades. “Cruzamentos construídos e enfrentados por um homem negro e paulista. Seguindo os passos de Henricão entre diferentes áreas e espaços foi possível conferir protagonismo a uma figura dos bastidores das histórias e estudos, mas que se mostra fundamental, entre outras coisas porque nos revela mundos artísticos urbanos e negros”, observa o antropólogo.
Por intermédio das “casas de discos”, que eram comuns na década de 1930, Henricão começou a consumir sambas de Francisco Alves, “um homem branco que gravava sambas de homens negros do Rio de Janeiro”. Entre apresentações teatrais e interpretações de samba, o artista é cada vez mais levado às artes pelo seu irmão, João.
Henricão formou uma dupla com a cantora Risoleta. Mais tarde, com outra cantora: Sarita. “Ele já estava no Rio de Janeiro, por volta de 1935. “Foi onde ele formou outra dupla com a cantora Carmem Costa e também passou a conviver com sambistas cariocas do Estácio. Ele se aproximou e conviveu com o compositor Ataulfo Alves”, conta.
A fama para Henricão chega nos anos 1930/1940. Como compositor ele fez algumas músicas, como Casinha da Marambaia e Só vendo que beleza. “No cassino da Urca, se apresentou com Grande Otelo e com a cantora norte americana Josephine Baker. E ele também participou de filmes produzidos pela Companhia Vera Cruz e de produções de Mazzaropi, quando retornou a São Paulo”, lembra Bruno, destacando que ele também chegou a atuar com Ruth de Souza.
Bruno também destaca que, com a ajuda de Henricão, outros nomes e figuras emergem “em meio a imagens e imaginações de uma época e de um país, que ele e seus contemporâneos ajudam a olhar e a compreender, de outros ângulos”.
Texto original de Antonio Carlos Quinto para o Jornal da USP: Trajetória do primeiro Rei Momo negro do carnaval de SP evidencia pluralidade de mundos artísticos e urbanos – Jornal da USP