Nascimento de Martin Heidegger

Autor de "Ser e Tempo" (1927), o filósofo alemão é um dos mais importantes do século 20

Por
Pedro Fuini
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Martin Heidegger
"Devido à sua crítica aguçada à modernidade, Heidegger se torna um pensador incontornável para nosso tempo", afirma Frederico Pieper. (Arte: Pedro Fuini)

O filósofo alemão Martin Heidegger nasceu em 26 de setembro de 1889, na Alemanha. É reconhecido como um dos pensadores mais importantes do século 20, sendo sua obra de maior destaque Ser e Tempo (1927), que repercutiu em outros campos como psicologia e teologia. 

Criado em um ambiente católico resistente à modernidade, Heidegger optou pela vida religiosa, possibilitando acesso ao ambiente universitário e ao interesse pela filosofia. Foi discípulo próximo do fundador da fenomenologia, Edmund Husserl.

A questão fundamental do pensamento de Heidegger é a pergunta pelo ser (quem somos?), questão básica da filosofia, de acordo com Frederico Pieper, doutor em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Para Heidegger, ainda que a questão tenha sido feita desde sempre, ela nunca foi respondida. Melhor dizendo: ela não foi sequer posta corretamente: a pergunta pelo ser, transformou-se na pergunta pelo ente”.

Segundo Pieper, por mais que Heidegger tenha sido uma figura polêmica, com opções políticas condenáveis (o filósofo foi filiado ao Partido Nazista), ele foi responsável por tratar vários temas na filosofia de maneira original, tendo sido um crítico da modernidade. Correntes filosóficas como o pós-estruturalismo e a fenomenologia contemporânea, além de pensadores pós-modernos, hermeneutas e mesmo pensadores pós-coloniais e decoloniais, dialogam com as ideias de Heidegger. “Por isso, ele se configura como pensador incontornável de nossa época.”

Confira na íntegra a entrevista de Frederico Pieper ao Hoje na História.

 

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Martin Heidegger?

Frederico Pieper: Martin Heidegger, sem querer sê-lo, foi uma figura polêmica. Crescido num ambiente católico alemão refratário à modernidade, optou pela vida religiosa. O estudo de teologia com os jesuítas possibilitou a ele acesso ao ambiente universitário. No entanto, logo se interessou pela filosofia. Estudou com nomes proeminentes da filosofia alemã do início do século 20, tornando-se discípulo próximo do fundador da fenomenologia, Edmund Husserl. Porém, cedo desenvolve pensamento autônomo que ganha forma com a obra inacabada Ser e Tempo (publicada em 1927). Essa obra dá a ele grande projeção, tendo sido recebida com mais entusiasmo em outras áreas (psicologia, teologia). Mas, com a repercussão, rapidamente é reconhecida como uma das mais importantes (se não a mais importante) do século 20. 

Com a ascensão de Hitler ao poder, Heidegger se filia ao partido nazista e exerce o reitorado na universidade de Freiburg por 10 meses. O fato de ele nunca ter se desfiliado do partido nazista tem gerado grande debate. Para alguns intérpretes, as suas ideias filosóficas o conduzem para essa opção política, de modo que sua filosofia apresenta contornos que o levariam a reconhecer no nazismo a realização histórica de muitas de suas ideias filosóficas. Para outros intérpretes, não é possível vincular tão imediatamente sua filosofia à sua opção política. Com a recente publicação do texto inédito de correspondências Cadernos Negros, percebeu-se que Heidegger se alinhava com posturas políticas mais à direita, o que não significava aceitação acrítica das ideias nazistas.

Sobretudo após sua morte, suas obras completas, que já passam dos 100 volumes, têm sido publicadas. Nessas obras completas (Gesamtausgabe), cujos textos e as datas de publicação foram determinadas pelo próprio Heidegger, encontramos textos preparados para publicação, textos de aulas, conferências, anotações para curso etc.  Algo curioso é que Heidegger, apesar da idiossincrasia do seu estilo, que torna seu texto de difícil compreensão, parece-me ser um dos filósofos com mais textos traduzidos para o português. Isso revela o interesse e o vigor de suas ideias para o tempo presente.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais foram as ideias/conceitos fundamentais desenvolvidos por ele?

Frederico Pieper: A questão fundamental do pensamento de Heidegger é a pergunta pelo ser. Todo aluno de filosofia aprende no primeiro ano de estudos que esta é a pergunta básica da filosofia. Para Heidegger, ainda que a questão tenha sido feita desde sempre, ela nunca foi respondida. Melhor dizendo: ela não foi sequer posta corretamente: a pergunta pelo ser transformou-se na pergunta pelo ente. 

Heidegger percebe que a pergunta pelo ser prestava-se a duas tarefas. A primeira é conhecer os entes enquanto entes, o que equivale a conhecer a essência de cada um deles. A biologia, por exemplo, procura estudar o reino animal a partir de sua perspectiva particular: ela quer conhecer como o sistema circulatório de determinado animal funciona, quais os órgãos que o compõem, etc. Já a filosofia se preocupa em estudar aquilo que faz com que este determinado animal seja, isto é, quer conhecer seu ser. A segunda tarefa se relaciona com a totalidade dos entes. Esta totalidade dos entes pode ser conhecida a partir de uma causa comum, ou seja, há a tentativa de se apreender o princípio primeiro do ser. Na filosofia grega, este termo aparece como arché. O princípio primeiro foi, desde Aristóteles, relacionado com Deus que resolve dois problemas básicos da metafísica. Deus é, em primeiro lugar, a razão e fundamento (Grund) da existência dos entes. Por outro lado, é Deus quem possibilita o conhecimento da essência destes entes. Por este motivo, para Aristóteles, o ser é a causa sui, isto é, a causa não causada. O ser torna-se um ente que está acima de todos os entes. Este ente não está sujeito à historicidade, é imóvel e é puro pensamento. Assim, a pergunta pelo ser transformou-se na pergunta pelo ente do qual todos os outros entes (i.e., todos os seres) dependem e faz com que todas as coisas existam. 

Essa sobreposição entre ser e ente se relaciona com determinado conceito de tempo. O tempo se configura como um ente entre os demais e não o horizonte transcendental que determina toda compreensão do ser. Em outros temos, o tempo não é a estrutura do ser, mas uma estrutura entre outras. A partir disso, o ser foi tido como algo presente à nossa frente e cujas propriedades pode-se descrever ou representar. Com base nisso, constitui-se certa concepção de verdade: uma afirmação é mais verdadeira do que outra à medida que se adequa a esta estrutura. O ser possui uma estrutura estável a partir da qual é possível julgar os juízos, os valores, os pensamentos e as atitudes em relação à maior proximidade ou distância desta estrutura. Em termos mais familiares, pode-se julgar a objetividade de determinado discurso tomando a estrutura do ser como paradigma.

Essa noção do ser como estrutura (como presença) tem múltiplas consequências. Por exemplo, a noção vulgar de verdade. No nosso dia a dia, dizemos que uma afirmação é verdadeira quando o que é dito corresponde a um estado de coisas. Se digo que a mesa é marrom, minha afirmação é verdadeira se observo a mesa e vejo que ela é marrom. Se ela for branca, minha afirmação não corresponde à mesa como ela é. Portanto, minha afirmação não é verdadeira. Heidegger não nega que essa noção de verdade tem seu lugar e uso no nosso cotidiano. Mas, ela não é a compreensão mais fundamental de verdade. O problema desta concepção de verdade é assumir o ente como dado e evidente, atribuindo à linguagem a função de apenas procurar a melhor maneira de se referir ao que se apresenta diante de mim. A verdade é designada como o juízo correto, que se conforma com o já dado e evidente. O problema dessa concepção é que ela não se dá conta de que há algo anterior. Para que certo juízo possa ser estabelecido, é necessário que os entes apareçam, sejam desvelados, se “fenomenalizem”. O ser não é presença indefectível, antes é a desocultação dos entes que institui a abertura na qual toda predicação é possível. Heidegger denomina este evento de desocultação de verdade. 

O esquecimento do ser em favor do ente não se restringe a uma discussão filosófica entre especialistas. Heidegger entende que está na sua base a vontade de domínio sobre a totalidade dos entes, tornada explícita na época da técnica. Para que este domínio fosse possível, foi necessário que se atribuísse ao ser uma certa estrutura. Uma vez que o ser tem uma estrutura, ele pode ser plenamente abarcado e dominado. Além disso, a concepção de tempo como um ente entre os demais e não como horizonte de compreensão do ser, possibilitou a crença no conhecimento objetivo destas estruturas, não suscetível à historicidade ou à temporalidade. Portanto, para entender a técnica e muitos traços do nosso tempo não basta apenas uma compreensão das revoluções da modernidade ou dos traços sociológicos da sociedade moderna. Para Heidegger, essas abordagens tocam a superfície do problema. Na sua base está uma ontologia, ou seja, um modo de habitar o mundo que encontra suas raízes no início do pensamento metafísico ainda entre os gregos. 

Se o ser não é o ente, o que ele é, então? Aqui esbarramos nos limites da linguagem. Dizer que o ser é “alguma coisa” significaria transformá-lo num ente. Por isso mesmo, Heidegger tem de encontrar meios de dizer sobre o ser sem objetivá-lo. Mas, de maneira mais direta, o ser é esta abertura dentro do qual o encontro entre sujeito e objeto e todas as decisões são possíveis. Neste sentido, seria melhor não dizer que o ser é, mas que ele acontece (es gibt).  O ser “é” evento. Aqui uma comparação pode nos auxiliar. Imagine que você tenha de entrar num quarto escuro. Para isso, você conta com a ajuda de uma lanterna. Essa lanterna cria um foco (um horizonte) que lhe permite identificar a mesa, a cadeira e uma cama que está dentro do quarto escuro. A luz que sai da lanterna abre um campo de visão que permite que você encontre os objetos (entes) que lá estão de uma determinada maneira. Você não vê o quarto todo, mas apenas aquilo que o foco de luz ilumina. Poderíamos comparar o ser a esse foco de luz que permite o acesso aos objetos (entes) que estão no quarto, mas ela mesma não é um objeto (ente) entre outros que estão no quarto.  

O modo como essa questão se desdobra no pensamento de Heidegger não é unívoco. Em Ser e Tempo, o caminho é construído da seguinte maneira. Heidegger identifica que o Dasein (ser humano diante da pergunta pelo ser) tem um modo de ser que o difere dos demais entes. Este é o único ente que coloca seu ser em questão. Portanto, para se chegar ao sentido do ser em geral, deve-se perguntar a este ente o sentido do seu ser. Em uma frase: interroga-se o Dasein, questionando-se o seu ser, tendo em vista a pergunta pelo sentido do ser em geral. Por isso, na primeira parte publicada da obra, Heidegger faz uma análise desse Dasein (ser humano). Como ele é caracterizado por sua existência, Heidegger faz uma espécie de analítica existencial. O movimento conhecido como existencialismo retira dessas análises inspiração para suas ideias. Se ela é inspiradora para essa recepção da obra de Heidegger, por outro lado, ela traz sérios problemas. Talvez esteja aqui a razão de ter ficado inacabada. Afinal, de um lado Heidegger pretende superar a concepção subjetivista da filosofia moderna; por outro, o modo como ele aborda a questão em Ser e Tempo ainda se mostra muito devedor dessa tradição filosófica. A partir de 1930, Heidegger redimensiona o lugar do Dasein indicando uma superação desse paradigma moderno da subjetividade. É o que ficou conhecido como a virada (Kehre) do pensamento de Heidegger.

 

Serviço de Comunicação Social: Qual foi o legado deixado pelo filósofo?

Frederico Pieper: Se as opções políticas de Heidegger são condenáveis, não há como negar que ele antecipou a urgência de se tratar de vários temas. O estilo de sua escrita pode induzir à percepção errônea de que seu pensamento é abstruso e distante das preocupações mais prementes do nosso tempo. Para ele, a confusão entre ser e ente não é mera querela filosófica. Aqui se decide um modo de habitar o mundo. Com ela, tem-se em vista o domínio dos entes. O ser humano, guiado pela vontade de poder, visa a todo momento ampliar seu domínio sobre tudo aquilo que se coloca como um “outro”. A razão instrumental explora o outro com a finalidade de constituir fundos de reserva. Isso implica numa relação que poderíamos denominar de extrativista tanto em relação à natureza como em relação aos seres humanos. Desse modo, Heidegger se coloca como crítico da modernidade, trazendo temas que hoje estão na agenda de discussão.

Para além dos temas, o modo como ele pensa essas questões é também importante. O esquecimento do ser em favor do ente viabilizou a ideia de que os problemas que enfrentamos no fim da modernidade são sanáveis como medidas administrativas. Bastam alguns arranjos ou projetos feitos por uma racionalidade planificadora que os problemas estão superados. No entanto, ele indica que a questão é bem mais profunda. Não se trata de correções de trajeto, mas de se encontrar outros modos de habitar a terra. Isso significa encontrar outras formas de racionalidade (a arte pode nos ajudar muito nessa tarefa) que ensejam outros modos de relação com os entes. Como ele próprio diz em um texto tardio: “Aqui se mira a possibilidade de a civilização ocidental mundial, assim como apenas agora começou, superar algum dia seu caráter técnico-científico-industrial como única medida de habitação do homem no mundo. Esta civilização mundial certamente não o conseguirá a partir dela mesma [...]”.*

(* HEIDEGGER, Martin (2007). Zur Sache des Denkes. 2. ed. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann. (Gesamtausgabe 14/1), P.75

Devido à sua crítica aguçada à modernidade, Heidegger se torna um pensador incontornável para nosso tempo. Não é gratuito que muito do pós-estruturalismo, da fenomenologia contemporânea, de pensadores pós-modernos, de hermeneutas e mesmo pensadores pós-coloniais e decoloniais dialoguem com suas ideias. Por isso, ele se configura como pensador incontornável de nossa época.

Frederico Pieper é doutor em Filosofia pela FFLCH, pela qual também se graduou em História e Filosofia. É também mestre e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e graduado em Teologia pelo Instituto Concórdia de São Paulo. Atualmente, é professor no Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), atuando na graduação e pós-graduação, na área de Filosofia da Religião. Sua tese de doutorado, Ontologia, teologia, metafísica no projeto transcendental de Martin Heidegger, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.