Nascimento de Monstesquieu

Autor de "Do Espírito das Leis", Montesquieu é conhecido por sua tese da separação dos poderes

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Nascimento de Monstesquieu
Segundo Rafael Salamon, "A ideia de que o exercício do poder político precisa ser limitado por mecanismos impessoais (institucionais) me parece ser um dos principais legados de Montesquieu para o mundo contemporâneo". (Arte: Alice Elias)

 

Em 18 de janeiro de 1689, nasceu Montesquieu, filósofo francês e um dos pensadores mais famosos do Iluminismo. Conhecido por sua tese da separação dos poderes, iniciada no final da década de 1720, é autor de obras como Cartas Persas, Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e da sua Decadência, e Do Espírito das Leis, essa última sendo sua principal obra e um marco do pensamento político ocidental. Dentre os temas tratados por Montesquieu, destacam-se a noção de espírito geral, a tipologia das formas de governo e a noção de moderação, de acordo com Rafael Salamon,  mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH) da USP.

Um dos primeiros a analisar os costumes e as leis sob a ótica metodológica da ciência, sua inovadora forma de abordar o comportamento social o levou a ser considerado um precursor da sociologia. Montesquieu acreditava que os costumes e as leis tinham causas passíveis de estudo e identificação – mais ainda, acreditava que o conhecimento dessas causas era fundamental para legisladores e governantes. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Montesquieu?
Rafael Salamon: Charles Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, foi um importante filósofo francês da primeira metade do século 18. Trata-se de um dos pensadores mais conhecidos do Iluminismo. A sua família era proprietária de vinhedos nas proximidades da cidade de Bordeaux e pertencia à nobreza de robe provincial (aqueles que se enobreceram por meio da carreira no Direito). Montesquieu estudou Direito na juventude, sucedendo ao seu tio no cargo de president à mortier no Parlamento de Bordeaux em 1716. Os parlamentos franceses desse período eram, fundamentalmente, cortes de justiça. Uma das suas principais funções era a aprovação dos novos impostos estabelecidos pelo rei, o que provocava conflitos frequentes entre os parlamentares e a monarquia absolutista. O final do reinado de Luís XIV (que governou entre 1643 e 1715) deixou marcas profundas no pensamento político de Montesquieu. O filósofo temia as ambições centralizadoras deste monarca, conhecido como Rei Sol, vendo-as como uma receita para o surgimento do despotismo (fim da liberdade e da segurança dos cidadãos). No final da década de 1720, o filósofo viajou para a Inglaterra, país no qual ele começou a desenvolver a célebre tese da separação dos poderes. Montesquieu tornou-se famoso com a publicação, em 1721, das Cartas Persas, romance epistolar que satirizava os costumes franceses por meio do olhar estrangeiro. O livro, publicado anonimamente em Amsterdã, criticava o absolutismo e a intolerância religiosa. Em 1734, o filósofo publicou as Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e da sua Decadência. Mas foi em 1748, após vinte anos de trabalho, que ele terminou a sua principal obra, Do Espírito das Leis, um marco do pensamento político ocidental. O naturalista suíço Charles Bonnet, contemporâneo de Montesquieu, mandou-lhe uma carta com um elogio bastante significativo e revelador: “Newton descobriu as leis do mundo material: vós descobristes, Senhor, as leis do mundo intelectual.”

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a filosofia de Montesquieu?

Rafael Salamon: Três elementos me parecem centrais na filosofia de Montesquieu: a noção de espírito geral, a tipologia das formas de governo e a noção de moderação.

Montesquieu foi um dos primeiros filósofos modernos a tratar os costumes e as leis como fatos que poderiam ser explicados de maneira metódica e racional (ou, para utilizar o vocabulário atual, com o rigor metodológico da ciência). Segundo ele, as instituições específicas de cada sociedade eram formadas pela interação de vários fatores ou circunstâncias (clima, fertilidade do solo, religião, leis, forma de governo, costumes, hábitos, história etc.). Esses fatores agiam uns sobre os outros, combinando-se de maneira diversa em cada sociedade. O resultado dessa combinação produzia aquilo que o filósofo chamava de espírito geral de um povo. As leis propostas por um legislador funcionariam apenas se ele levasse em consideração o espírito geral da sociedade com a qual trabalhava. Para Montesquieu, a “maneira de viver” de um povo (o que os sociólogos chamam hoje de representações e práticas sociais) não era arbitrária ou irracional. Os costumes e as leis tinham causas que podiam ser identificadas e estudadas. O conhecimento dessas causas era tido por ele como imprescindível para os legisladores e governantes. Essa nova maneira de abordar o comportamento social fez com que Montesquieu fosse considerado um precursor da sociologia por comentadores como Émile Durkheim, Raymond Aron e Louis Althusser.

A forma de governo era um dos elementos mais importantes do espírito geral. No Espírito das Leis, Montesquieu classificou os governos em três tipos: república (quando o poder é exercido pelo povo); monarquia (quando o poder é exercido por um rei que se submete às leis e às tradições) e despotismo (quando o poder é exercido por um indivíduo que obedece apenas à sua vontade). O filósofo não acreditava na existência de uma forma de governo ideal. Tudo dependia das circunstâncias de cada sociedade. A república era mais apropriada para os Estados pobres e pequenos. A monarquia, por sua vez, convinha de preferência aos países ricos e de extensão territorial mediana. O importante, em ambos os casos, era que o governo fosse moderado, isto é, que ele fosse capaz de proporcionar aos cidadãos o sentimento de segurança. Para Montesquieu, a liberdade política só pode existir quando os cidadãos acreditam que a sua vida é garantida pelas leis. O despotismo, por outro lado, é entendido pelo filósofo como um regime de governo que corrompe a natureza humana. O déspota, cujo poder não é moderado por nenhum limite institucional, dispõe arbitrariamente da vida e dos bens dos seus súditos. Como afirmou Montesquieu em uma passagem que se tornou famosa, “todo homem que tem poder é levado a abusar dele”. Para que isso não aconteça, “é preciso, pela disposição das coisas, que o poder pare o poder.” (Espírito das Leis, livro XI, capítulo 4, p. 395). A tese da separação dos poderes em legislativo, executivo e judiciário, arranjo constitucional baseado nas observações do filósofo sobre o sistema político inglês, deriva do conceito de moderação.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Rafael Salamon: No capítulo 6 do livro XI do Espírito das Leis, Montesquieu analisou o sistema político inglês, apresentando a tese da separação dos poderes. Segundo ele, “tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de principais ou nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o poder de fazer as leis, o poder de executar as resoluções públicas e o poder de julgar os crimes ou as diferenças entre os particulares.”. “Entre os turcos”, continua o filósofo, “onde esses três poderes estão reunidos na cabeça do sultão, reina um terrível despotismo.” (p. 397). A ideia de que o exercício do poder político precisa ser limitado por mecanismos impessoais (institucionais) me parece ser um dos principais legados de Montesquieu para o mundo contemporâneo. O atual conceito jurídico de Estado de Direito deve muito à tese da separação dos poderes. O liberalismo político e econômico dos nossos dias costuma ver nisso a defesa do indivíduo contra a interferência excessiva do Estado. Essa não me parece ser a única apropriação possível do pensamento de Montesquieu. Para este filósofo, a manutenção da liberdade política não era, apenas, uma questão abstrata de elaboração de leis e de contrapesos institucionais. Para serem efetivas, produzindo o sentimento de segurança, as leis precisariam dialogar com o espírito geral do povo, educando e formando os cidadãos. No regime republicano de governo, por exemplo, Montesquieu considerava que o amor à “coisa pública” (a virtude) deveria ser o sentimento predominante dos membros da sociedade. E mesmo na monarquia, governo no qual a busca pela honra e pelas distinções individuais constituía a força motriz da política, Montesquieu atribuía ao Estado lugar central na formação dos cidadãos. O próprio conceito de despotismo, no Espírito das Leis, parece-me muito próximo da ideia de privatização do Estado. O déspota, tal como é retratado por Montesquieu, assemelha-se a um particular que utiliza a força do Estado para alcançar objetivos privados. Ao fazer isso, ele compromete a estabilidade das leis, dispondo arbitrariamente da vida dos cidadãos (especialmente daqueles que são pobres e desamparados demais para se protegerem). Em um país como o nosso, marcado por um passado autoritário recente, a leitura do Espírito das Leis alimenta debates importantes não apenas para a pesquisa acadêmica, mas também para a prática política efetiva. 

Rafael Salamon é mestre em História Social pela FFLCH e professor de História da Prefeitura do Município de Itatiba. Para quem se interessar mais sobre o tema, sua dissertação de mestrado está disponível em O corpo e o espírito das leis: ciência, medicina e religião em Montesquieu.

Observações.
As citações do Espírito das Leis são de MONTESQUIEU, Oeuvres complètes. Bibliotèque de La Pléiade. Paris, Gallimard, T. II, 1951. As traduções são de Rafael Salamon.
A carta de Charles Bonnet é citada por: SHACKLETON, Robert. Montesquieu: a critical biography, Oxford University Press, New York, 1961, p. 252. A tradução da frase também é de Rafael Salamon.