Tendo influenciado grandes pensadores na história da filosofia, a obra foi a mais lida e interpretada do filósofo Hegel ao longo do século 20
No ano de 1807, foi publicada a obra Fenomenologia do Espírito, do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel. O livro trata da questão de um chamado “saber verdadeiro”, o “real”, o qual a ciência tenta encontrar. À sua época, estava em voga a corrente filosófica, introduzida por Kant, de separar aquilo que é real de fato (“coisa em si”) e o que a consciência humana pode perceber como real (“fenômeno”). Assim, Hegel busca entender a maneira com a qual, na história, a filosofia e a ciência lidaram com a questão: “como nosso saber pode corresponder à verdade?”.
Entrevistado pela Comunicação Social, o pesquisador Lucas Batista Axt, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que, mesmo com a pouca importância dada à obra na época em que foi primeiro exposta, posteriormente ela foi intensamente lida e interpretada pelos campos da filosofia. Sua importância hoje reside na influência de grandes personalidades como Karl Marx, Jean-Paul Sartre, Jacques Lacan e até os estudiosos da Escola de Frankfurt.
O trabalho de Hegel demonstra que as chamadas “objetividade imediata” e a “subjetividade vazia”, separadas, são pontos de vista que, se tomados de maneira “unilateral” conforme explica Lucas, são equivocados. A superação deste problema, portanto, reside em tomar ambas como momentos errados e que se contradizem, mas que estão incluídos na ciência e levam ao desenvolvimento do saber. Há, assim, uma análise da “formação acidentada da consciência”. Explora-se também a relação não somente da consciência com o objeto, mas da consciência com outras consciências, com o outro. Esse segundo momento da obra é que interessou o pensamento das figuras mencionadas anteriormente.
Para entender a Fenomenologia do Espírito um pouco melhor, confira a entrevista completa de Lucas Axt:
Serviço de Comunicação Social: De que fala o livro Fenomenologia do Espírito, de forma resumida?
Lucas Batista Axt: É difícil delimitar o assunto da Fenomenologia, pois parte do que a torna uma obra tão singular é a grande variedade dos temas que ela aborda. Uma resposta curta poderia ser a seguinte: a Fenomenologia se pretende uma introdução da consciência comum, “natural”, ao “saber verdadeiro”, à ciência. Ela faz isso através de uma história da formação dessa consciência, indo das formas mais imediatas de saber às mais complexas. O problema – e aqui a resposta deixa de ser curta – é que o “estado da questão” da filosofia na época de Hegel é o de que há uma espécie de barreira entre nós e a verdade, entre o sujeito e o objeto – visão que alcança sua maior expressão na filosofia de Immanuel Kant e na distinção entre “fenômenos” (que podemos conhecer) e “coisas em si” (que não conhecemos). Para Hegel, a ciência (em um sentido bem mais ambicioso que o de nossas ciências particulares) deveria ser capaz de expor o real de maneira a superar essa separação entre uma objetividade imediata e uma subjetividade vazia, formal. Hegel entende que esse ponto de vista da ciência só poderia ser uma “superação” dos pontos de vista anteriores se for capaz de mostrar que tais pontos de vista estão incluídos nela, como seus momentos. Ao menos aqui é esse o sentido da famosa “dialética” hegeliana: que cada ponto de vista (Hegel chamará ao longo da obra de “figuras”) é uma posição unilateral, “errada”, e que entra em contradição consigo mesma. Porém, são essas “negações” de cada figura que levam a um desenvolvimento desse saber, e é dessa formação acidentada da consciência, ao modo de um Bildungsroman (romance de formação), que trata a Fenomenologia. Cada figura expressa uma forma pela qual a história da filosofia e da ciência tentaram responder a questão “como nosso saber pode corresponder à verdade?”.
Um resumo dessa forma, contudo, estaria incompleto sem mencionar o quanto a obra ultrapassa esse interesse estritamente epistemológico. Seja porque a questão do conhecimento se mostrará ligada a uma relação intersubjetiva e ética (não se trata apenas da relação da consciência com um objeto, mas da consciência com outras consciências e do conflito entre o “eu” e o “outro”), seja porque, na metade do livro, o ponto de vista se altera radicalmente, passando a tratar da relação da consciência com o mundo social, político e religioso, momento em que Hegel faz um balanço histórico que vai da antiguidade grega e romana à Revolução Francesa, além de uma análise da relação da consciência com o sagrado, na forma das diversas manifestações religiosas ao longo da história. A ideia de que a verdade não é um dado a priori, que está lá esperando nossa descoberta, mas sim que é produzida na e pela História, me parece um dos pontos mais interessantes da filosofia hegeliana.
Serviço de Comunicação Social: Que impacto o livro gerou após sua publicação e até os dias atuais? E sua importância geral?
Lucas Batista Axt: O impacto inicial foi muito pequeno. Quando Hegel alcança algum prestígio filosófico, enquanto professor (e reitor) da Universidade de Berlim, é pela obra chamada “madura”, exposta na Enciclopédia das ciências filosóficas, que ele será conhecido, sendo a Fenomenologia legada a um papel muito reduzido. Curiosamente, a Fenomenologia se tornará, ao longo do século 20, a obra mais lida e interpretada de Hegel. Um capítulo em especial merece um comentário à parte pela quantidade de frutos que rendeu, o que fala sobre a “luta por reconhecimento” de uma consciência com outra, e da relação que se origina daí (que deverá ser superada) entre uma consciência que assume o papel de “senhor” e outra de “escravo”. A centralidade do trabalho para a formação do sujeito e o problema da alienação que aparecem neste capítulo serão muito influentes para o jovem Marx e para certas linhas do marxismo. A leitura que Alexandre Kojève faz desse capítulo, em uma série de aulas em Paris nos anos 30, inspirou desde filosofias existencialistas como a de Sartre à psicanálise de Lacan. No contexto da teoria crítica, também conhecida como Escola de Frankfurt, Axel Honneth tomará a ideia de “luta por reconhecimento” como chave de leitura para lutas contemporâneas de grupos sociais oprimidos. Para além desse célebre capítulo, as análises hegelianas sobre a arte e tragédia grega, sobre o Iluminismo e a Revolução Francesa, sobre a religião e até a crítica a “pseudociências” que surgiam no século 19 como a frenologia e a fisiognomia, entre outros assuntos, suscitam o interesse de leitores ainda hoje.
Serviço de Comunicação Social: Como essa obra de Hegel é estudada e recebida no contexto acadêmico da FFLCH?
Lucas Batista Axt: Evidentemente, a área onde ela é mais pesquisada é na Filosofia, sempre embasada em uma leitura rigorosa do texto hegeliano. A amplitude temática da obra, que mencionei acima, permite estudá-la dos mais diversos pontos de vista e linhas de pesquisa que se fazem presentes no Departamento de Filosofia da USP. Pode-se estudá-la por seu interesse para a História da Filosofia, no contexto dos debates mais estritamente filosóficos da época, no movimento intelectual que ficou conhecido como “Idealismo Alemão”, por exemplo. Pode-se estudá-la pelo seu interesse para a Ética e a Filosofia Política, dado seu tratamento do tema da intersubjetividade, da sociabilidade e da análise de instituições e eventos históricos como o Império Romano, o Absolutismo, a Revolução Francesa, etc. Pode-se estudá-la por seu interesse para a Estética e Filosofia da Arte, a partir das considerações sobre a beleza na religião grega e o diálogo crítico de Hegel com o Romantismo Alemão. Por fim, pode-se estudá-la por sua influência em movimentos intelectuais posteriores, como o marxismo, o existencialismo e a psicanálise, no que, talvez, poderia se travar um diálogo produtivo com as outras ciências humanas presentes na FFLCH.
Lucas Batista Axt é mestre em filosofia pela FFLCH-USP com dissertação intitulada “Espírito e reconhecimento na Fenomenologia do espírito: para além da dialética do senhor e do escravo”. Suas áreas de interesse são ética e filosofia política.