Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

A Declaração oficializou os direitos dos indivíduos e esboçou uma maneira nova de se enxergar a organização da sociedade, ela serviu como documento antiabsolutista e teve repercussão mundial

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

“No dia 26 de agosto de 1789, vieram à luz os 17 artigos da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, de acordo com Daniel Gomes. [Arte: Pedro Seno]

"No dia 26 de agosto de 1789, vieram à luz os 17 artigos da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, nas palavras de Daniel Gomes de Carvalho, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em entrevista concedida ao Hoje na História, o pesquisador explica que, durante a Revolução Francesa, com a queda do antigo regime, os setores sociais que compunham o comitê de Constituição da Assembleia Nacional discutiam a reestruturação da sociedade. Havia a necessidade de uma declaração que abrangesse os direitos (ou mesmo deveres) do homem, antes mesmo da formulação da futura Constituição Francesa.

A Declaração determinava que os direitos seriam naturais e inerentes ao homem, não ligados às instâncias governamentais e políticas. Tinham como base os valores da igualdade jurídica, liberdade e propriedade privada. Sua violação resultaria na infelicidade dos homens, mas jamais na sua destruição. Uma novidade, então, seria o emprego do termo direitos do “homem”, que era pouco utilizado até o momento, no lugar de direitos “naturais”.

Mais do que oficializar os direitos dos indivíduos, a Declaração também traçou uma nova maneira de se enxergar a organização da sociedade, em que, por exemplo, a soberania do povo seria “essencialmente, a nação”, e não deuses, corporações ou grupos. Estes, por sua vez, poderiam sempre investigar e cobrar a governança de quem representa a mesma.

Mesmo difusos seus alcances, se a Declaração serviria às colônias, aos povos negros ou às mulheres, ela foi o início dos ideais que hoje encontramos, por exemplo, nos Direitos Humanos declarados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Com repercussão mundial, a Declaração tanto sofreu críticas quanto foi aclamada, a depender de onde foi publicada, e tinha como papel, sobretudo, ser um documento antiabsolutista. Ainda hoje, ela é motivo de debates por ter sido produzida no contexto da Revolução Francesa, que continua sendo pauta de discussões políticas e controvérsias nas diferentes esferas nacionais, como detalhou o professor entrevistado.

Ele ainda nos mostra que, na FFLCH, o estudo desse período possui ao menos três abordagens distintas: os trabalhos de George Lefebvre, os estudos de Albert Soboul e por fim, a análise de fontes primárias, indo ao texto original sempre bem vinda por promover reflexões novas. Esse é um fator que contribui para o caráter de análise crítica do assunto: “ressaltando seus limites e condições específicas de produção”.

Para saber os detalhes da Declaração de 1789, seus contextos sociais, históricos, políticos, curiosidades e boas informações, confira na íntegra o texto que o professor Daniel Gomes produziu acerca do tema:

Daniel Gomes de Carvalho: 
Como demonstrou há muitas décadas o historiador George Lefebvre – e, até os dias de hoje, a historiografia ainda sustenta uma visão semelhante – a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão não são uma mera concessão da burguesia nos Estados do Reino (que a historiografia, tempos depois dos fatos, batizou de “Assembleia dos Estados Gerais”); pelo contrário, sua conquista deve-se a ação do povo nas cidades e nos campos, o que garantiu a continuidade e o aprofundamento da Revolução.

Ocorre que, desde maio de 1789, os Estados Gerais – que, em junho, transformam-se em uma Assembleia Constituinte – aprovaram uma série de medidas contra o Antigo Regime. Desse modo, nos primeiros meses da Revolução, Luís XVI, em cartas enviadas ao primo e rei da Espanha, Carlos IV, disse estar descontente com os rumos das coisas, de modo que seu poder foi “arrancado pela força desde 15 de julho”, isto é, um dia após a tomada da Bastilha. Ocorre que a movimentação popular em Paris obrigou Luís XVI a dirigir-se a Paris, onde foi recebido por Bailly e La Fayette. Nenhum dos dois se ajoelhou diante de Luís XVI. E mais: Luís XVI não foi nem à Catedral de Notre-Dame, nem ao Jardim das Tulherias, antigos símbolos da monarquia, mas ao centro da contestação popular, à prefeitura. O rei prometeu amar o povo, utilizou o traje preto do terceiro estado e a insígnia tricolor. O embaixador dos Estados Unidos em Paris, Thomas Jefferson, disse jamais ter visto um gesto desse tipo por parte de um soberano. Após isso, o monarca voltou a Versalhes para lidar com a Assembleia.

Enquanto isso, e de forma mais dramática, ganharam fôlego as revoltas camponesas na França. Em uma das mais clássicas passagens de toda a historiografia da Revolução Francesa, Michelet descreveu os motivos dos levantes camponeses: “não devemos surpreender-nos se o camponês, uma vez tendo pegado as armas, delas se serviu e tirou sua desforra. Vários senhores tinham vexado cruelmente suas comunas, que nesse dia se lembraram disso. Um havia cercado de muros a fonte da aldeia, confiscando-a para si. Outro apoderava-se dos bens comunais. A tomada da Bastilha encorajou-os a atacar as suas. Tudo com que se deve ficar surpreso, quando se sabe o que sofriam, é que tenham começado tão tarde”.

Assim, as insurreições camponesas de 1789, que passaram os contemporâneos, representaram a definitiva entrada dos camponeses na revolução. Na primavera de 1789, o povo campesino insurgiu-se em Toulon e Marselha, na alta Provença, no vale de l’Avance, na região de Gap, em Cambrai, Cambrésis e Picardia. No começo do verão, o movimento ganhou força. O grande castelo de Senozan, do irmão de Talleyrand, fora destruído. Nas proximidades de Versalhes, o povo massacrou coelhos (símbolos do direito senhorial de caça), fechou pombais e disparou contra os guardas. Atacou-se, algumas vezes, algumas abadias. Em seguida, entre 20 julho e 6 agosto de 1789, por 17 dias, uma atmosfera de pânico, chamada de “Grande Medo”, tomou cinco áreas por um período de três semanas: a região de Nantes, Maine, o Franco-Condado, Champagne, Clermontois e Angoulême.

Para o historiador Georges Lefebvre, a “causa determinante” de todos esses medos era a suposição de que uma corja de aristocratas parasitas havia contratado bandidos e estariam estocando alimentos, a teoria “complô aristocrático”. Mais recentemente, o historiador Timothy Tackett demonstrou que a teoria do complô, embora existente em Paris, foi sobretudo posterior ao grande medo e aos ataques contra os castelos. Não há dúvidas, de todo modo, que a revolução camponesa catalisou mais um ato revolucionário na Assembleia Nacional Constituinte. No dia 4 de agosto de 1789, o Clube bretão (embrião da futura Sociedade dos Amigos da Constituição, conhecida, depois, como “Clube dos Jacobinos”) propôs “utilizar uma espécie de mágica para destruir todos os privilégios das classes, províncias, cidades e corporações”. Dois membros da nobreza, visconde de Noailles e duque d’Aiguillon, então, propuseram a lei de “Fim do Feudalismo”. A ideia de “feudalismo”, na Revolução Francesa, operava albergando os diversos tipos de privilégios aos quais a Revolução se opunha.

Vários direitos senhoriais (o complexum feudal) foram suprimidos. Também foram extintos sem indenização os direitos considerados “pessoais” (a mão-morta e as corveias), enquanto os direitos “reais” (banalidades, o dízimo e as taxas) exigiam um “resgate” pelos camponeses (que só será abolido em 1793, após a proclamação da República). Sob proposta do visconde de Beauharnais, foram estabelecidas a igualdade de penas, a admissão de todos os cidadãos às funções públicas e a abolição da venalidade dos cargos. A nobreza renunciou a reservas de pescas e pombais. Luís XVI foi declarado “regenerador da liberdade” enquanto, em carta ao arcebispo Arles, XVI afirmara que não aprovara o que ocorreria e que protegeria o “seu” clero e a “sua” nobreza.

O comitê de Constituição da Assembleia Nacional, então, propôs que a futura Constituição da França fosse precedida de uma declaração de direitos. Enquanto o abade de Sieyès defendia um longo tratado sobre a natureza humana em vez de uma declaração, partidários do antigo Regime, como o bispo de Auxerre e Malouet, opunham-se à ela: “por que propor direitos se eles apenas podem ser exércitos sob justos limites?” Em resposta, o abade Grégoire disse: “para mostrar aos homens não apenas o círculo no qual eles podem se mover, mas também os limites que eles não podem transpor.” Por 570 votos contra 433, a proposta de uma declaração simples foi vitoriosa. No dia 26 de agosto de 1789, vieram à luz os 17 artigos da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, chamada pelo historiador Alphonse Aulard de “atestado de óbito do Antigo Regime”. O abade Grégoire clamou por uma Declaração de Deveres, mas seus pares argumentaram que isso seria redundante, dado que direitos e deveres são correlatos.

Direitos, dizia a Declaração, podem ser ignorados, esquecidos ou desprezados, mas nunca poderiam ser criados ou destruídos. Seriam eles naturais, inerentes ao homem e anteriores a qualquer governo, caberia à Assembleia, apenas, declará-los e protegê-los pela lei, garantindo, assim, a felicidade geral. Assim, o preâmbulo é categórico: “a ignorância, o esquecimento e o desprezo pelos direitos do homem são as únicas causas da infelicidade e da corrupção dos governos”. A sociedade, portanto, não deve ser uma ruptura em relação à natureza, mas seu (re)descobrimento e aperfeiçoamento. O tempo não cria direitos, a tradição não é fonte de autoridade, e o fundamento de todo governo é, disse artigo segundo da Declaração, “a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do Homem”, quais sejam, “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Nas palavras de Rabaut Saint-Étienne, em 1788, nas Considerações Sobre os Interesses do Terceiro Estado: “nossa história não é nosso código”. 

No século XVIII, falava-se com mais frequência de em “direitos naturais”, em vez de direitos humanos. Diderot, em 1755, afirmara que a noção de “direitos naturais” (a liberdade, a igualdade jurídica e a propriedade privada) era “tão familiar que ninguém deixaria de ficar convencido, no interior de si mesmo, de que a noção lhe é obviamente conhecida.” Já o termo “direitos do homem” era menos frequente no século XVIII. Rousseau, Holbach, Mercier e Raynal estavam entre os poucos que o empregavam. Mais raro ainda era o termo “direitos humanos”. Os primeiros registros de “direito humano” (no singular) aparecem de forma isolada, em 1763, no Tratado sobre a Tolerância de Voltaire.

Seja como for, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa afirmava que, ao nascer, todos os homens teriam direito à liberdade e à igualdade. Segundo o artigo 1, “os Homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Embora sejamos iguais em direitos, isso não significa que não haja distinções criadas posteriormente: “as distinções sociais”, prossegue o artigo primeiro, “só podem fundamentar-se na utilidade comum”. Em outras palavras, as distinções não são oriundas de privilégios de nascimento, mas de elementos produzidos no interior da própria sociedade. 

A liberdade e a lei não deveriam se opor, dado que é somente no império da lei que podemos ter nossos direitos assegurados. A liberdade, diz o artigo 4, “consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”. Paradoxalmente, a liberdade é protegida e potencializada por intermédio da aceitação de sua própria limitação: o direito do “próximo” é um limite à liberdade que tem como consequência a realização de minha própria liberdade. Por isso, dizia o artigo 5, a lei proíbe apenas “as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene”.

Parcela fundamental do direito à liberdade seria a própria noção de liberdade de opinião e imprensa. De acordo com o artigo 10, “ninguém pode ser molestado por suas opiniões, mesmo as religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. A palavra “mesmo” (même) nos remete a premência da questão no período. A propósito, a separação entre Estado e Igreja (levada a cabo nos Estados Unidos em 1787) não estava na declaração e só foi efetivada em 1795, após a “queda” dos jacobinos. 

Em seguida, o artigo 11 estabeleceu que “todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. A Assembleia, então, embora tenha proclamado a liberdade de imprensa, também proibiu a calúnia e tornou obrigatórias as menções do nome do impressor, do autor e do relator. Quando o texto leva o nome de seu autor as ideias podem ser a ele atribuídas, o que permite tanto o estabelecimento dos direitos autorais quanto, se for o caso, a punição.

A propósito, se a liberdade não seria um direito “absoluto”, dado que necessita de limites impostos pela lei, o mesmo poderia ser dito da propriedade, embora a declaração fosse mais tímida nesse sentido (não havia, de todo modo, qualquer movimento de vulto contra a propriedade em 1789, o que não será verdade dez anos depois). O artigo 17 dizia que a “propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização”. A ideia de justa e prévia indenização atendia a demanda imediata de legitimar o resgate dos direitos senhoriais.

É evidente que a ideia de direitos pressupunha uma força coercitiva para sua proteção. Por isso, o artigo 12 atestava a necessidade de uma “força pública” feita para “fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada”, a qual deveria ser sustentada, conforme o artigo 13, com recursos públicos. A existência de uma força policial permanente seria um pacto nacional pela garantia da própria segurança.

Importante notar que toda a ideia de igualdade, na Declaração, corresponderia a direitos, nunca a recursos ou bens. Trata-se, sobretudo, de igualdade jurídica. Toda lei, diz o artigo 6, “é a expressão da vontade geral”, de modo que “todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação”. A lei é a mesma para todos e todos os cidadãos são “iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”.

A soberania, assim, não residiria em corporações, indivíduos, grupos ou deuses, mas, como dizia o artigo terceiro, “essencialmente, na nação”, de modo que “nenhum corpo, nenhum indivíduo poderia exercer autoridade que dela não emane expressamente”. Os artigos 14 e 15 são, até hoje, princípio fundamental de toda e qualquer administração pública, pois admitia que todo cidadão, “por si ou pelos seus representantes” poderia verificar as contas públicas e pedir contas a qualquer agente público.

O artigo 16, por sua vez, assegurava que não há liberdade ou Constituição sem a devida separação de poderes. Percebe-se que, apesar das críticas conservadoras de que os a declaração seria “abstrata”, há um profundo vínculo entre ela e as necessidades próprias de agosto de 1789, como a questão do pagamento do resgate e o esforço pelo fim da tortura e dos privilégios. A propósito, é um erro pensar que a monarquia do Antigo Regime não era hostil ao livre comércio, o que explica a ausência do tema na Declaração. Outros elementos ausentes na declaração, como direito de reunião, o direito de petição, a instrução universal e a assistência públicas não estavam (ainda) na ordem do dia, e seriam incluídas nas outras declarações de direitos da Revolução, especialmente a jacobina.

A Declaração teve uma ampla repercussão. Imediatamente panfletos satíricos passaram a criticar a Declaração de Direitos do Homem. Conforme relatado no livro de Jeffrey Merrick e Bryant Ragan, muitos panfletos diziam que os direitos do homem encorajariam a prostituição e a homossexualidade. Poucas semanas após a votação da Declaração na França, a Gazzete de Leyde, na Bélfica, reproduziu integralmente o texto. Em Frankfurt, o mesmo foi feito entre agosto e setembro pelo Frankfurt Reichoberpostamzeitung, copiado por gornais em Bonn, Mogúncia, Zweibrücken e Worms. Na Espanha, apesar da proibição pela inquisição, circularam manuscritos em francês e serviram de modelo para a Constituição antiabsolutista de Cádiz, em 1812. Na América do Sul, a primeira tradução da Declaração em castelhano veio à luz em Bogotá, 1794, obra do alto funcionário Nariño, que acabou encarcerado. Na Itália, jornais de Veneza, Milão e Nápoles reproduziam não apenas a Declaração de Direitos Humanos, mas todos os eventos políticos, de forma bastante detalhada. Na Polônia, a declaração traduzida e impressa estava disponível ainda em 1789. Na Hungria, o Besci Magyar Kurir publicou traduções de trechos da Declaração antes que ela estivesse concluída. Na América do Norte, em 17 de outubro, o New York Daily Gazette publicou a primeira tradução, desejando que o mundo inteiro a conhecesse. No Brasil, em 1828, Frei Caneca publicou e divulgou as palavras de Declaração em Pernambuco. Na Rússia, em 1790, Alexander Radishchev publicou seu romance Viagem de São Petersburgo a Moscou. No texto, inspirado pelos franceses, ele incitava os camponeses russos a destruição revolucionária da servidão. No mesmo ano, a czarina Catarina II ordenou o exílio de Radishchev e fechou todos os clubes revolucionários do Império.

Posteriormente, a Assembleia estabeleceu o voto censitário (isto é, condicionado pela renda) e masculino. Essa lei não contraria a própria Declaração e sua ideia de direitos do cidadão? Certamente, aos nossos olhos e ao de alguns poucos homens da assembleia (como Robespierre, defensor do voto universal masculino, e Condorcet, defensor do voto feminino); aos olhos da maior parte da Assembleia Nacional, a resposta seria negativa. O abade de Sieyès, em seus textos, estabelecerá a distinção entre cidadãos ativos, que participariam da votação e elaboração de leis, e os cidadãos passivos, que não estariam aptos ao voto, correspondentes às mulheres e àqueles que não pagavam um tributo de pelo menos o valor de três jornadas de trabalho. Para ele, o voto e a eleição não seriam propriamente direitos, mas funções (como a de um funcionário público), exercidas apenas pelos mais capacitados, que seriam, em sua perspectiva, os homens com recursos, pois gozariam de maior independência.

Também não estava claro se os direitos dos homens incluiriam as populações colônias (como São Domingos, Martinica e Guadalupe, onde predominava a escravidão), o tornou-se objeto de debate nos anos seguintes (afinal, como se viu, é preciso lembrar que a Declaração não era uma Constituição, de modo que muitos detalhes não estavam ainda claros). Para Mirabeau, por exemplo, era óbvio que sim: “eu não irei degradar nem essa assembleia nem eu mesmo buscando provar que os negros têm direito à liberdade. Vocês já decidiram essa questão ao declarar que os homens nascem e permanecem livres e iguais.” Robespierre, por sua vez, afirmou: “vós defendeis sem cessar os Direitos do Homem, mas acreditais neles tão pouco que santificastes a escravidão constitucionalmente”. Os representantes dos brancos das colônias, recém-admitidos nas assembleias, pensavam diferente. O Clube Massiac, organizado pelos colonos do Haiti, defendia os interesses dos escravocratas na Revolução. Mesmo Robespierre, embora se declarasse contrário a escravidão, em vários momentos silenciou sobre o tema em nome do que entendia ser a integridade nacional. Enquanto isso, em São Domingos (atual Haiti), um homem negro, Dodo-Laplaine, foi preso, açoitado e marcado por ter lido para os escravizados a Declaração de direitos do homem e do cidadão. 

No fim das contas, a primeira Constituição da Revolução Francesa, 1791, as assembleias coloniais teriam autonomia sobre a questão; como elas estavam controladas pelos homens brancos, na prática isso poderia significar a manutenção da escravidão. Em contrapartida, a ampla campanha de Julien Raimond e, ao fim e ao cabo, a Revolução Haitiana, colocaram a questão da escravidão e do direito das pessoas negras na ordem do dia na Revolução Francesa, o que é fundamental – ao lado da guerra contra a Inglaterra, claro – para entender a chamada “primeira” abolição da escravidão, em fevereiro de 1794, enquanto os jacobinos estavam à frente da Assembleia (dado que Napoleão Bonaparte, depois, restaura a escravidão nas colônias, a “segunda” abolição ocorrerá em 1848). Por isso, hoje, a historiografia não enxerga a Revolução Haitiana como mero “reflexo” da Revolução Francesa, mas como um processo que não apenas tem autonomia, mas também é fundamental para o próprio desenrolar dos acontecimentos em território francês.    

Apesar de seus limites, é verdade que a Declaração continuará uma referência importante, sendo apropriada, inclusive, por aqueles que reivindicavam sua extensão. Por exemplo, em resposta a exclusão das mulheres na Constituição de 1791, a escritora Olympe de Gouges (1748-1793) redigiu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Nascida em 1748, Gouges era filha de um açougueiro do Languedoc, conhecida pelas suas peças de teatro, algumas encenadas na Comédie Française. Engajada na promoção do divórcio, do voto feminino, da criação de oficinas de trabalho para desempregados e na defesa do fim da escravidão, Gouges fazia parte do Cercle Social e era próxima de Condorcet. Para ela, o voto feminino seria uma decorrência necessária da igualdade diante da lei: “se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, tem igualmente o direito de subir à tribuna”.

A Declaração de Gouges tinha um duplo aspecto: por um lado, reforçava o apoio à Revolução Francesa e aos direitos humanos; por outro lado, ela considerava a Revolução incompleta. O homem, disse, recorreu à força da mulher para “romper os grilhões”, mas, em seguida, “se tornou injusto em relação às suas companheiras”. Femme, réveille-toi (Mulher, acorde!), “quais são as vantagens que vocês obtiveram da Revolução?” A declaração de Gouges retirava da palavra “homem” a pretensamente universalidade. “A mulher nasce livre e permanece igual aos homens em direitos”, disse no Artigo 1; “a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis da mulher e do homem”, disse no Artigo 2; a nação “não é outra coisa que a reunião da mulher e do homem”, disse no Artigo 3.  No preâmbulo da Declaração, conclamava Maria Antonieta a liderar as mulheres: “esta revolução não se operará a não ser quando todas as mulheres forem liberadas de sua deplorável sorte”.

De todo modo, enquanto o Bill of Rights dos ingleses (1689) consagrou os direitos apenas dos homens da Inglaterra, os direitos humanos propostos pela Revolução Francesa propunham-se universais. Em parte, é por isso que federalistas e outros membros das elites políticas norte-americana tomaram a França como modelo de radicalização– “temos também nossos Robespierres e nossos Marats”, disse o político norte-americano John Adams. Quando, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a sua Declaração Universal dos Direitos Humanos, catorze dos seus trinta artigos fizeram referência direta (às vezes, com as mesmas palavras) à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Dois artigos ainda foram retirados da Declaração de Direitos de 1793 e um da Declaração de 1795.

 

No entanto, é preciso dizer que a noção de direitos humanos na Revolução Francesa costuma, até os dias de hoje, ser criticada à direita e à esquerda: à direita, por aqueles que afirmam que os propósitos universalistas da Revolução solaparam as tradições “orgânicas” e afirmaram as ideias metafísicas contra os costumes milenares; à esquerda, por aqueles que afirmam que os direitos humanos, no final das contas, eram um falso universalismo, instaurando o regime de homens burgueses europeus sob a máscara dos interesses globais. Em parte, o jovem Marx via na Revolução Francesa o início da política moderna precisamente por instituir um espaço imaginário do Estado e cidadania como igualdade frente à realidade de proletarização.

Em 1989, durante o bicentenário da Revolução Francesa, a família real inglesa recusou-se a celebrar a “revolução regicida”. Enquanto o então presidente da França, François Mitterand, celebrava a “Revolução dos Direitos do Homem”, a primeira-ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher, declarou que os direitos humanos foram uma invenção inglesa e deu a Mitterrand uma cópia de Um Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens, texto que, como a História da Revolução Francesa de Thomas Carlyle, pintava a revolução Francesa destacando suas tonalidades violentas. No mesmo período, um historiador inglês radicado nos Estados Unidos, Simon Schama, publicou um livro chamado Cidadãos, no mesmo espírito de Carlyle e Dickens. Seu colega norte-americano, James Leith, argumentava que a Revolução pouco diferenciava-se do nazismo, do fascismo e do stalinismo. Mitterand, com sua conhecida sagacidade, respondeu: “me alegra que a revolução ainda seja temida.” Desse modo, penso que a declaração ainda é objeto de disputa e de apropriações diversas.

Durante minha graduação no departamento de História da FFLCH tive o privilégio de estudar o tema três vezes: na disciplina de meu orientador de doutorado, Modesto Florenzano, no curso de História Moderna II, com o professor Carlos Alberto Zeron e nas aulas de História Contemporânea I, com o professor Oswaldo Coggiola. Nos três casos, a análise do texto se deu de forma crítica, ressaltando seus limites e condições específicas de produção. Nas aulas do professor Florenzano, conheci os trabalhos de George Lefebvre; nas aulas do professor Coggiola, tomei contato, a partir de suas indicações, com os trabalhos de Albert Soboul; finalmente, na disciplina do professor Zeron, pudemos ler o documento na íntegra e debater detalhadamente os artigos da Declaração, exercício de análise de fontes primárias que julgo ser indispensável na formação do historiador e da historiadora.



Daniel Gomes de Carvalho é doutor em História Social pela FFLCH e professor de História Contemporânea na Universidade de Brasília.